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domingo, maio 19, 2024

ARTIGO: Por que se cria gado em reservas extrativistas?

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Há pouco mais de uma década, moradores da reserva extrativista Chico Mendes estavam assustados diante de uma série de boatos e mal entendidos sobre uma operação realizada por órgãos ambientais. As medidas, que geraram reuniões entre representantes dos moradores e dos órgãos envolvidos, era desdobramento de uma ação mais enérgica do ministério do meio ambiente, iniciada com a operação boi pirata, no Estado do Pará, mas que no Acre teve uma versão chamada de “operação resex legal”. A exemplo do que tem ocorrido nos últimos dias nos municípios de Xapuri, Brasiléia, Epitaciolândia e outros onde se encontra a reserva extrativista Chico Mendes, as ações de uma década atrás visavam combater o avanço da pecuária e consequente desmatamento sobre a Unidade de Conservação.

É notório que desde o final da década de 1990 a presença de gado bovino de corte aumentou de forma impressionante no estado do Acre. Há controvérsias quanto ao tamanho do rebanho bovino do Acre, mas pelos dados dos censos agropecuários do IBGE, de 1995 a 2017 o estado apresentou crescimento de 151,77% no número de cabeças. É o maior percentual de crescimento entre todos os Estados da Amazônia Legal. Conforme tem demonstrado alguns pesquisadores, estes resultados não são obra do acaso e resultam de um robusto aparato de medidas de incentivo oficial, que vão desde o fortalecimento dos instrumentos de controle sanitário, que viabilizam a abertura de novos mercados, até a absurda e já comum isenção de ICMS na comercialização de animais para abate em outros Estados. O perfil do crescimento do rebanho bovino de corte no Acre revela que, assim como em outros Estados, os governos da Frente Popular cederam às pressões de ruralistas por privilégios.

Segundo dados preliminares do Censo Agropecuário de 2017, do IBGE, divulgados em 2018, o gado bovino está presente em aproximadamente 74% dos 7.243 estabelecimentos rurais situados na região que engloba do município de Capixaba até Assis Brasil. Com 531 mil cabeças de bovinos esta microrregião concentraria 25% do rebanho do estado do Acre. Cerca de 56% dos que ali criam gado consiste em rebanhos com até 50 cabeças. Voltando a falar das ações da operação Resex Legal, entre 2008 e 2009 foi realizado um recenseamento na Reserva Chico Mendes e revelado que à época haveria um rebanho de 21.173 cabeças de gado bovino, sendo 46,32% de novilhas e vacas, o que indica um rebanho voltado à fase de cria (as fêmeas representavam 73,29% do rebanho total). Apesar de uma série de normas restritivas, à época, cerca de 56,3% (1.089) das famílias recenseadas declararam criar gado.

Embora não tenhamos dados atualizados especificamente sobre rebanho pecuário na reserva, sabe-se que a grande maioria condiz com criações em pequenas quantidades, especialmente voltadas à produção de bezerros para a complementação da renda familiar, visto não haver maiores incentivos capazes de conferir competitividade à borracha de seringais nativos, por exemplo. Os incentivos à criação de gado, como a isenção de impostos na comercialização, levou não somente os grandes fazendeiros a aumentarem seus rebanhos, mas induziu a totalidade dos moradores de áreas rurais a se integrarem a esta atividade. Na verdade, parte dos bois e vacas abatidas consiste nos bezerros/bezerras oriundos de pequenos criadores, inclusive moradores de áreas de reservas. Obviamente que este incentivo tanto pressiona por mais terras a serem incorporadas ao processo produtivo, quanto atrai mais pessoas para esta atividade, inclusive quem não é necessariamente do meio rural.

Esta dinâmica tem sido especialmente perversa com moradores das reservas extrativistas e projetos de assentamento agroextrativistas, pois, além da pressão constante de fazendeiros e outros agentes que os assedia a venderem ou alugarem partes de suas colocações, sobre eles muitas vezes pesam injustas acusações de que estariam destruindo o meio ambiente. Apesar das mudanças no sistema produtivo, os moradores destas unidades tem demonstrado um cuidado especial com os recursos naturais, muito possivelmente porque tem clareza de que a continuidade de suas vidas e das gerações seguintes depende disto. Quando cruzamos dados da quantidade de famílias da Reserva Chico Mendes, disponíveis na base do SIPRA, do INCRA, com dados sobre desmatamento, disponíveis na base do PRODES, do INPE, verificamos que entre o período de 2011 e 2017, apesar da taxa de crescimento de moradores ser expressiva, a taxa de incremento do desmatamento está muito abaixo do que se verifica em áreas fora da Reserva.

Portanto, é necessário buscar aprofundar o conhecimento das causas mais gerais que levam ao avanço da pecuária sobre áreas protegidas e a partir disso tomar medidas inibidoras que possam ir além da ação policial como em 2008, ou como esta que ocorre agora. Grande tem sido o esforço das populações tradicionais para conservar as unidades ambientais, mas falta ainda uma contrapartida a altura por parte dos governos.

Por José Maria Barbosa de Aquino – Boka
Ex-seringueiro e sindicalista, foi fundador da Associação da Resex Chico Mendes – em Xapuri, da qual foi diretor. Também coordenou o CSN – Conselho Nacional dos Seringueiros, de 1999 até 2011.

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