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sexta-feira, outubro 4, 2024

Fumaça das queimadas aumenta risco de doenças respiratórias no Acre

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Nos dias mais críticos de incêndios, ar respirado pelos moradores da capital Rio Branco apresentava níveis de contaminação até 10 vezes superior recomendado pela OMS; falta de chuvas também ameaça abastecimento de água para 70% da população 

Na noite do dia 16 de agosto, a taxa de poluição no ar respirado pela população em Rio Branco, capital do Acre, foi de 160.3 ug/m3 (microgramma por metro cúbico). O recomendado à saúde humana pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é de 25 ug/m3; ou seja, os rio-branquenses inalaram um ar seis vezes mais poluído. Dez dias depois, na madrugada de quinta-feira, 27, o sensor que mede a qualidade do ar instalado na região central de Rio Branco registrou uma máxima concentração de material particulado PM2.5 (material particulado fino ou, em inglês, particulate matter) de 386,11 ug/m3.

A causa para um ar tão contaminado é a fumaça das queimadas que tem entre os seus componentes o monóxido de carbono e o dióxido de nitrogênio, além de micropartículas conhecidas como PM2.5. Estudos apontam que uma exposição prolongada a estes componentes pode levar ao desenvolvimento de doenças cardíacas por também entrarem na corrente sanguínea.

A “temporada de queimadas” começou no mês de julho e acontece em áreas de pecuária e agricultura após os desmatamentos, inclusive em áreas de floresta nativa. Em 2020 os efeitos da poluição da fumaça ficaram mais críticos diante da pandemia do novo coronavírus, decretada em 11 de março pelo OMS. Os sintomas da Covid-19 são semelhantes ao de problemas de saúde causados pela exposição a um ar poluído. Dessa forma, todos os casos de problemas respiratórios – seja por conta da infecção pelo Sars-CoV 2 ou por inalar fumaça – vão para as estatísticas oficiais como SRAG: Síndrome Respiratória Aguda Grave.

A jornalista Angélica Paiva é o exemplo de como a saúde humana pode ser afetada pela fumaça das queimadas em tempos de coronavírus. No começo de agosto ela foi diagnosticada com Covid. Apresentou sintomas leves e fez o tratamento em casa. O principal problema, lembra ela, era ter que conviver com o vírus, mais as consequências de um ar tomado pela fumaça das queimadas.

“Houve um dia em que o cheiro de fumaça estava tão forte que fiquei sem ar, e precisei fazer nebulização. Eu tive a sorte de a Covid não afetar os meus pulmões, mas o estrago que ela não fez, as queimadas completaram”, define Angélica Paiva.

Essa maior presença de material poluente no ar está relacionada diretamente com o aumento no registro das queimadas urbanas e rurais. Quanto mais vegetação é incendiada, mais partículas são emitidas e inaladas pela população, afetando, sobretudo, o sistema respiratório.

“Quando acontece a queimada ela vai emitir material particulado no ar. Essas partículas, dependendo do tamanho, causam problemas que vão desde algo simples como uma tosse, uma irritação no nariz ou nos olhos, até se desenvolver uma infecção pulmonar, a depender do tempo de exposição a esse ar poluído”, explica William Flores, professor da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Ciências das Florestas Tropicais pelo Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

Flores lidera a equipe do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGama), responsável pela produção e análise de dados sobre a qualidade do ar no Acre. De acordo com ele, a maior presença de material particulado no ar agrava o quadro de saúde de pessoas infectadas pelo coronavírus, cujos efeitos principais é o ataque ao sistema respiratório. Pessoas portadoras de doenças respiratórias crônicas como a asma integram o chamado grupo de risco da Covid-19, e também são prejudicadas pela fumaça.

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“Há estudos publicados nos Estados Unidos mostrando que em regiões onde o nível de poluição do ar é muito elevado você aumenta significativamente a probabilidade de morte por Covid”, comenta Flores.

“Historicamente a Amazônia não é vista como uma região com ar poluído como são os grandes centros urbanos do país. Mas aqui temos esta atipicidade entre agosto, setembro e outubro que é o uso do fogo como uma tecnologia para a conversão de biomassa florestal para fins de adubação do solo”, diz. Porém, como o pesquisador ressalta, essa queima da biomassa também tem como efeito a liberação de gases poluentes que é absorvido pelo sistema respiratório.

De acordo com o boletim epidemiológico desta sexta-feira (28) da Secretaria de Saúde do Acre (Sesacre), o estado tem registrado, desde o dia 17 de março, 24.462 pessoas foram infectadas pelo coronavírus, com 608 mortes.
Ainda de acordo com dados da Sesacre, 1.316 pessoas foram hospitalizadas em Rio Branco, capital do Acre, durante este ano por SRAG. O pico das internações aconteceu em maio, quando a capital do estado estava em curva crescente nos casos da Covid-19, e as queimadas ainda eram uma realidade distante do cotidiano dos acreanos, como passou a ser desde meados de julho.

Em junho e julho a quantidade de pessoas hospitalizadas por SRAG foi reduzido após o pico de maio. Foi exatamente neste período que o Acre começou a apresentar redução nos casos de infectados pelo coronavírus. Os dados da secretaria apontam uma expressiva diminuição de SRAG em agosto, quando o estado atingiu o maior nível na redução de contaminados e mortos por Covid-19, mas está no pico do registro de queimadas.

De 274 pessoas internadas em julho, o número caiu para 71 até o dia 18 de agosto. Enquanto a Covid-19 parecia estar sob controle, o ar nas cidades ia ficando sem condições de respirar pela fumaça das queimadas que não paravam de aumentar nos meses mais secos e quentes.

Estimativa de estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), aponta que, em 2019, 2.195 pessoas moradoras dos estados que formam o bioma Amazônia foram hospitalizadas por problemas respiratórios causados pela fumaça oriunda do desmatamento. A maioria dos pacientes (1.080) era composta por pessoas acima de 60 anos, que também integram o grupo de risco da Covid-19.

Dos 3.325 focos de calor registrados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) no acumulado deste ano, 2.098 ocorreram entre 1 e 28 de agosto. Este pico se justifica por agosto ser o mês que apresenta as condições ideais para o uso do fogo: longos dias sucessivos sem chuva, baixa umidade e temperatura elevada. E é também em agosto que o ar respirado pelos acreanos está em suas piores condições. A situação é ainda mais preocupante por os 30 dias de setembro também apresentarem as mesmas caraterísticas.

Em relação a 1o. de janeiro a 28 de agosto de 2009, quando o Inpe registrou 3.009 focos de calor no Acre, em 2020 o aumento de queimadas é de 10,5% em relação ao mesmo período do ano passado.
As queimadas típicas desta época do ano na Amazônia – seja para fins de limpeza de roçados e pastagens ou para a queima de floresta recém-desmatada – representam a principal contribuição do Brasil para a emissão de gases do efeito estufa. Além de causar impactos diretos para o meio ambiente e a saúde da população local, estes incêndios causam desequilíbrio no clima de todo o planeta.

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Monitorando o ar

Desde o ano passado o Acre mantém um programa de monitoramento da qualidade do ar construído em parceria entre o Ministério Público Estadual e a Universidade Federal do Acre (Ufac). São 30 sensores espalhados pelos 22 municípios do estado. A presença de poluentes na atmosfera é medida 24 horas e acompanhada em tempo real por professores e pesquisadores da universidade.

Em 2019, quando o estado passou por uma das maiores crises das queimadas por conta do afrouxamento das políticas de proteção ambiental promovidas pelo atual governo, metade dos municípios apresentou elevada concentração de material particulado no ar.

Em Assis Brasil (7,4 mil habitantes) e em Sena Madureira (45,8 mil pessoas) os moradores ficaram mais de um mês respirando ar fora dos padrões recomendados pela OMS. Já os mais de 400 mil moradores de Rio Branco passaram por este problema por 24 dias, segundo os dados do LabGama.

A preocupação do pesquisador William Flores é que as previsões feitas pela Nasa para 2020 de um verão mais severo e prolongado se concretize, o que pode agravar a piora da qualidade do ar em meio a uma pandemia. Mesmo com os casos da Covid-19 aparentemente estabilizados, há o risco de o estado ser afetado por uma segunda onda, e de ela ocorrer no momento mais crítico das queimadas e de ar poluído.

A fumaça e o vírus

Além dos problemas de saúde, as queimadas causam prejuízos aos bens das famílias. No dia 20 de agosto, a casa da senhora Maria Aparecida da Rosa por muito pouco não se viu tomada pelo fogo. Moradora do bairro Irineu Serra, região alta de Rio Branco, tem como vizinha uma grande área de vegetação com árvores e capim alto. Com os dias sucessivos sem chuvas e quentes, o terreno apresentava as condições para pegar fogo; e foi o que aconteceu.

Ninguém sabe a origem, pois a área que antes servia de pasto para o gado teria sido vendida para uma imobiliária construir condomínio. De acordo com o Corpo de Bombeiros, a maioria deste tipo de queimada é criminosa, de pessoas que ateiam fogo por pura maldade, sem considerar os riscos envolvidos. A Amazônia Real acompanhou o trabalho dos militares no combate ao fogo que colocava em risco a casa de Aparecida.

Diante das proporções das chamas e da força dos ventos, o combate de forma tradicional, com o uso de água ou abafadores, mostrava-se ineficaz. A solução era usar a técnica do fogo-contra-fogo, evitando que as chamas chegassem até o imóvel. Assim foi feito e funcionou. Porém, houve momentos de sustos com a mudança de direção dos ventos, que também mudava a trajetória das chamas.

Com a ajuda dos vizinhos e a mangueira de dona Aparecida ligada ao poço, o fogo foi controlado. “Aqui quase todos os anos é assim. Ano passado não teve, mas em 2018 as chamas chegaram bem perto da minha casa. Sempre tem que passar um sem noção aqui e colocar fogo no mato”, diz a moradora.

De acordo com o Corpo de Bombeiros, em 2020 a corporação já atendeu a 3.787 ocorrências dos chamados incêndios ambientais; 1.139 a mais do que igual período de 2019. Os números contrastam com a redução dos focos de queimada apontada pelo Inpe no Acre; queda de 12% este ano diante de 2019.

Sem chuva, rios secos

O tempo seco também afeta o nível dos rios no Acre e, consequentemente, compromete o fornecimento de água potável para a população. Situação semelhante Rio Branco passou em 2016, ano de severo El Niño que reduziu o volume de chuvas. O rio Acre depende diretamente das chuvas para se manter em um nível seguro para evitar o colapso no sistema de distribuição de água para quase 70% da população do estado.

Quatro anos atrás, um sistema de racionamento e rodízio foi adotado na capital. A se confirmar as previsões de uma estiagem mais prolongada em 2020, o mesmo deve ser implementado agora. De acordo com dados da Sala de Situação da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema), o rio Acre chegou ao volume de 1,47m na sexta-feira, 28, o que o deixa na classificação vermelha de alerta máximo. No momento ele se encontra 17 centímetros acima do nível crítico de 17 de setembro de 2016; quando alcançou a marca de 1,30m; o mais baixo desde o início das medições, em 1971.

Dados da Sema apontam um baixíssimo volume de precipitação acumulada nestes dias de agosto nos municípios que formam a bacia do rio Acre. Em Assis Brasil, onde se encontra a cabeceira na fronteira com o Peru, o acumulado é de 7,00 mm – a média é de 35 mm para a época. Na capital o quadro é ainda mais crítico: 0,80 mm para uma média de 38 mm.

Como o mês de setembro também é caracterizado pelas temperaturas altas e pouca chuva, pesquisadores não descartam a possibilidade de o rio alcançar os mesmos níveis daquele 2016 de El Niño; tudo dependerá das chuvas. E se de fato as previsões da Nasa se confirmarem, o início do período de chuvas (o inverno amazônico) vai demorar mais um pouco.

Ricardo Melo, 44 anos, é um rio-branquense que nasceu e se criou às margens do rio Acre. Seu pai exercia a famosa profissão de catraieiro, como são chamados os operadores da pequena embarcação de madeira típica da Amazônia, a catraia. Os catraieiros do passado faziam a travessia dos moradores de um lado para o outro da cidade. Com a construção das pontes, a profissão caiu no ostracismo, e hoje restam poucos catraieiros.

Ricardo acabou herdando a profissão do pai, falecido há quase 20 anos. “Hoje em dia a gente quase não faz mais serviço, para piorar ainda veio essa pandemia”, lamenta. Em alguns pontos o rio Acre chega a níveis tão baixos que é possível atravessá-lo andando. Ricardo sabe como poucos ser difícil navegar em um rio nestas condições.

“Há épocas do ano que a gente tem que descer da catraia e puxar no braço mesmo. O maior cuidado é com os bancos de areias e os galhos no fundo. O risco de ficar encalhado é bem grande”, diz ele ao pilotar a Terezinha, nome da catraia que homenageia a mãe, ainda muito bem viva com 92 anos de idade. Foi na embarcação que a Amazônia Real percorreu um trecho urbano do rio Acre.

Enquanto se navega devagar, bem devagar (quase na manha), para não ficar encalhado em algum banco de areia no meio do rio ao fim de uma tarde, as fuligens das queimadas caem do céu dentro da catraia e nas águas barrentas do rio. Sinal claro de que, não muito longe dali, mais uma área de vegetação estava virando cinzas. E dessa forma os acreanos vão – já acostumados – sobrevivendo a mais um verão amazônico seco e cheio de material particulado em suas narinas.

Em tempos de poluição extrema, até a estátua do líder seringueiro Chico Mendes colocada no centro de Rio Branco ganhou uma máscara para se proteger da fumaça e do coronavírus.

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Outro lado

A Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema) afirma estar em execução operações de fiscalização e repressão a crimes como o desmatamento e as queimadas, e que é essa atuação conjunta entre órgãos ambientais e da Segurança Pública que tem permitido ao Acre reduzir sua quantidade de focos de calor em 2020.

“Iniciamos a implementação de um plano operacional estratégico nas áreas de maior criticidade no estado, ou seja nas florestas públicas, através de missões integradas de comando e controle com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente – Sema, Polícia Militar, através do Batalhão de Policiamento Ambiental (BPA) e Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac).”

Uma das principais preocupações das autoridades é combater os ilícitos no entorno das unidades de conservação, alvo da invasão de terras públicas para fins de grilagem.

A reportagem também procurou o Departamento de Pavimentação e Saneamento (Depasa), autarquia responsável pelo fornecimento de água potável no Acre, para saber quais medidas planeja implementar para garantir o acesso da população à água em tempos de nível crítico do rio Acre.

“Com o nível do rio Acre baixo, algumas medidas emergenciais já foram adotadas com objetivo de continuar garantindo o abastecimento de água tratada na capital. Uma possibilidade é a construção de uma barragem para aumentar o volume de água em torno das bombas flutuantes do sistema de captação. A medida evitaria sobrecarga das válvulas nas bombas que, com o rio mais baixo, acabam puxando mais areia que o normal, prejudicando a captação e consequentemente a capacidade de produção da unidades. Engenheiros e técnicos já trabalham no estudo de viabilidade da ação”, informou a Depasa.

  • Por Fábio Pontes.
    Esta reportagem foi publicada originalmente no site da agência de notícias Amazônia Real
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