“E no dia 28 de setembro de 1904 o então Coronel Gregório Thaumaturgo de Azevedo lançou a pedra fundamental de Cruzeiro do Sul no local conhecido como centro brasileiro.”
“Mas será que a história de nossa região começa aí mesmo?” Com esse questionamento a professora da UFAC Maria José Moraes nos convida a pensar a história de Cruzeiro do Sul, e da região do Juruá como um todo, para além do ato institucional da sua fundação.
A professora que tem formação em letras e pedagogia, com pesquisa em identidade amazônica, foi uma das três palestrantes convidadas para o seminário. “Cruzeiro do Sul: 117 anos da Fundação. Memórias e Identidade”.
O encontro promovido pelos acadêmicos da UFAC aconteceu nesta terça, 28, no auditório da Escola Flodoardo Cabral. O objetivo foi promover um debate apara além das agendas oficiais, como forma de abordar os aspectos históricos de Cruzeiro do Sul e região, a parti de outros olhares.
O encontro teve início com uma singela homenagem à professora Regina Maia que foi diretora da Escola Flodoardo Cabral e vice-prefeita durante o mandato de João Barbosa. A acadêmica Val Martins declamou uma poesia de autoria da professora, falecida em 2019.
Na dificuldade de estabelecer uma data para começar a contar a história da região, o acadêmico Alan Lima traça essas origens a partir de 1870, ano em que uma forte seca atingiu grande áreas do sertão nordestino, causando o deslocamento dos milhares de pessoas que vieram a ser os primeiros seringueiros.

“Mas isso não significa dizer que antes disso a região fosse desconhecida. O naturalista britânico William Chandless (aprox. 1865) já havia tentado alcançar o Juruá, no que, segundo os registros da época, foi impedido pela bravura dos índios náuas. A partir daí o Juruá passou a ser conhecido como a Terra dos Náuas”, explica.
“O Acre tem duas histórias. No vale do Acre houve a disputa com os bolivianos, e já aqui, no Juruá, foi com os peruanos”, explica o professor Gilberto Gomes. “Cruzeirense por decreto”, como gosta de dizer, o professor Gilberto Gomes nasceu em Rio Branco e ensinou história em Cruzeiro do Sul desde seus 16 anos de idade até os 65.
“O então coronel Gregório Thaumaturgo de Azevedo veio já com essa incumbência de fundar uma cidade, onde já existiam antes, alguns seringais. Ele ia fundar essa cidade no dia 7 de setembro, na boa do Moa, no seringal Invencível, mas em conversa com os locais, soube que a área era inundável durante o inverno amazônico. Então avistou mais acima uma área de colinas e concluiu que seria mais segura para a fundação da cidade. Ainda não havia um nome em uma daquelas noites anteriores à fundação a constelação de Cruzeiro do Sul bem acima do loca escolhido para a fundação da cidade e decidiu que esse seria o nome”, explica o professor.
“Roma foi fundada sobre sete colinas, e em Cruzeiro do Sul havia oito. Hoje não sabemos de todas elas, mas podemos identificar pelo menos cinco delas: o morro da Petrobrás (no bairro da Várzea), o morro do Querosene (onde está a antena da TV Cruzeiro do Sul), o morro do cemitério São João Batista, o morro da Glória e Escola S.José e o morro do Telégrafo, que não existe mais. Roma, que é muito mais antiga que Cruzeiro do Sul preservou suas sete colinas, que podem ser avistadas até hoje”, explica o professor Gilberto e pergunta: “O que foi feito com as nossas oito colinas?”
O Cruzeiro e a Serpente
“Parte dessas colinas foram aplainadas justamente para tentar cumprir a planta desenhada a pedido de Thaumaturgo”, explica Leonardo Honorato. Com formação em direito e ciências ambientais, o promotor de justiça foi professor do curso de direito do campus Floresta da UFA.
“Tendemos a ver o planejamento como algo bom. Mas é preciso também entender que o tipo de planejamento implica num modelo de ocupação que também é problemático”
Leonardo se dedicou ao estudo da planta original de Cruzeiro do Sul e sua influência sobre o modelo de cidade e a forma de ocupação urbana por ela determinada.
“Há uma influência do modelo barroco francês sobre a planta de Cruzeiro do Sul, mas também de um modelo que remete aos soldados e agrimensores romanos, que determinaram um tipo de ocupação espacial a qual o cel. Gregório Thaumaturgo é herdeiro via Portugal. Não por acaso, ele era bacharel em matemática, engenharia e direito, muito próximo aos militares romanos que tinham formação em aritmética, geometria e direito”, explica.
A apresentação em tela da planta original de Cruzeiro do Sul revela algumas surpresas para os olhares mais atentos. “A planta de Cruzeiro do Sul faz uma clara referência à ontologia cristã. Nela cruzam-se avenidas em um eixo que forma uma cruz cujos pés estão cravados sobre o rio Juruá. O rio é então como essa serpente que deve ser dominada, a natureza que deve ser submetida para dar lugar à civilização”, explica.
“A análise da planta revela ainda outros problemas de concepção urbana. Por exemplo: a cidade é um sistema fechado. Ela não está aberta para a sua zona rural, os seringais. O desenho das ruas e avenidas ignora a topografia, algo que percebemos hoje quando temos de subir uma dessas ladeiras. As linhas da cidade não se curvam nem mesmo às curvas do rio”, demonstra Leonardo através da planta.
Além da fundação de Cruzeiro do Sul: a Identidade Juruaense
Os seringais que já existiam antes da fundação de Cruzeiro do Sul estão representados na planta da cidade, como um conjunto desordenado de barracões que se distribui de maneira aparentemente irregular ao longo do Juruá e do Moa.
“Os seringueiros não foram convidados a fazer parte da fundação de Cruzeiro do Sul, e contudo, eles são parte fundamental dessa história”, explica a professora Zeza Moraes.
Nascida no seringal Santo Antônio no rio Juruá Mirim, a professora Zeza de Moraes se dedica a buscar uma compreensão profunda desta identidade amazônica-juruaense.
“Há uma identidade que antecede a fundação da cidade, essas pessoas contudo, não entraram nessa configuração”, explica.
“Não é adequado falar de um identidade juruaense como algo único Trata-se de uma configuração que é polimorfa. Eu, com meu cabelo cacheado e pele morena sou tão juruaense quanto o outo que é branco de olhos azuis, ou do menino ou menina indígena que vive na sua aldeia”, argumenta.
“Thaumaturgo de Azevedo é parte importante de nossa história? Sim ele é. Mas igualmente também é o seu José Bezerra do seringal, ou o cacique Mário dos Puyanawa, ou das muitas mulheres desconhecidas que fizeram e fazem história no seu dia-a-dia”, diz.
Na busca de traços que caracterizem uma identidade juruaense, a prof. Zeza Moraes identificou cinco deles:
1- Hibridismo entre seringal cidade: “As pessoas saem do seringal, mas trazem os hábitos e costumes do seringal consigo. No formato triangular das fachadas das casas, nos rituais de culinária, no costume de comer a família toda no chão. No hábito de plantar no quintal”
2- Identificação com os rios: “O rio é o local por onde chegam as novidades, as notícias. É um local para contemplar, pensar a vida. Infelizmente na cidade o rio acabou tendo essa configuração de esgoto. Algo que precisa ser repensado”.
3- Hospitalidade: “Quanto mais humilde a pessoa, mais ela quer receber bem. É um traço muito forte que compõe a identidade regional”
4- Nostalgia: “É muito forte especialmente entre as pessoas com mais de 70 anos, essa nostalgia dos tempos da borracha e do seringal”
5- Dificuldade em valorar o que é nosso: “Esta é uma característica negativa que é fruto de todos esses processos. Temos dificuldade em valorizar o que é próprio, o que é da terra. Quando muito isso é feito de maneira folclórica, mas não como algo constituinte de nossa identidade”
A professora encerrou sua apresentação recitando um poema de Mario de Andrade, chamado “Descobrimento”.
“Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De sopetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.
Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.”
Por Leandro Altheman – Juruá em Tempo