8 de janeiro: a democracia foi testada e suportou, mas é preciso reagir

Desde que a maioria dos brasileiros elegeu Luiz Inácio Lula da Silva como presidente da República, dois meses atrás, grupos de apoiadores de Jair Bolsonaro anunciavam que “algo” iria acontecer. Os mais delirantes estavam convencidos de que o “algo” seria um golpe militar para manter o ex-capitão no poder. Já os delirantes menos estúpidos tinham em mente que esse “algo” só aconteceria se fosse criada uma confusão de grandes proporções que exigisse a intervenção das Forças Armadas — e, a partir daí, passaram a organizar bloqueios de estradas e promover manifestações cada vez mais agressivas em vários pontos do país. E tem um terceiro estamento, tão delirante quanto os dois primeiros, porém mais perigoso, integrado por gente absolutamente mal-intencionada, ainda invisível, e que há muito vem se aproveitando da boa-fé de alguns, da indignação de outros e da absoluta ignorância da maioria para incensar ações extremistas contra o estado de direito.

E o que se temia, infelizmente, aconteceu. No último domingo, em Brasília, cerca de 4 000 pessoas participaram do mais grave ataque perpetrado contra as instituições desde o fim do regime militar, promovendo uma baderna sem precedentes que deixou um rastro de depredação, constrangimento e vergonha. Por mais de três horas, a democracia foi humilhada pela anarquia e pelo vandalismo. Diante de um estranhíssimo e até agora não muito bem explicado apagão das autoridades, militantes bolsonaristas ocuparam a Esplanada dos Ministérios, invadiram e depredaram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal — as sedes dos poderes da República. Carregando barras de ferro e pedaços de pau, marginais travestidos de manifestantes marcharam até a Praça dos Três Poderes e destruíram tudo que foram encontrando pela frente: armários, mesas, cadeiras, obras de arte, computadores, aparelhos eletrônicos, documentos.

DESTROÇOS - Rodrigo Pacheco no Congresso: ele se disse chocado com o tamanho da destruição promovida pelos criminosos na Câmara e no Senado – Carlos Alves Moura/Agência Senado; Andressa Anholete/Getty Images; Jefferson Rudy/Agência Senado; Gabriela Biló/Folhapress/.

Pela sequência dos eventos, não há dúvida de que a ação foi planejada e executada com zelo em seu objetivo e, ao que tudo indica, contou com a conivência ou omissão de certas autoridades. A invasão do Palácio do Planalto foi de uma gravidade singular. Entremeando trechos do Hino Nacional com gritos de “Lula, ladrão, seu lugar é na prisão”, os criminosos escalaram a mesma rampa de acesso ao prédio usada pelo presidente na solenidade de posse, quebraram os vidros e entraram no prédio sem qualquer dificuldade. Havia menos de uma dezena de seguranças no local. Os criminosos arrombaram as salas, arremessaram objetos pelas janelas, usaram as mangueiras de incêndio para inundar o piso, rasgaram fotografias, perfuraram quadros valiosos, quebraram esculturas, abriram armários e furtaram equipamentos. O gabinete do presidente da República só não foi violado porque as portas dele são reforçadas, os vidros, blindados e há um sistema de segurança especial.

Lula estava em Araraquara (SP) quando soube do ataque. No momento da invasão, havia um pelotão de trinta soldados do Batalhão da Guarda Presidencial (BGP) do Exército nas cercanias do Planalto. Homens treinados e equipados para agir em situações de conflito. Os militares, no entanto, só entraram em ação quando a depredação já havia acontecido. Antes do Planalto, o tsunami da barbárie já havia passado pelo Congresso, onde uns poucos policiais que guardavam o local, inertes, chegaram a guiar os invasores. Praticamente nada ficou intacto. Sala após sala, tudo foi sendo destruído — móveis, equipamentos de segurança, obras de arte. Um delinquente chegou ao disparate de se sentar na cadeira do presidente da Câmara e, em tom de deboche, “proclamou” uma lei. Uma vergonha. O presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, estava de férias na Europa, antecipou a volta ao Brasil e se disse absolutamente chocado com o que encontrou.

LÁGRIMAS - A ministra Rosa Weber no STF: ao ver o prédio pichado, a mobília quebrada e o plenário do tribunal totalmente destruído, ela chorou – Carlos Alves Moura/ag. senado; Carlos Alves Moura/ag. senado; Carlos Alves Moura/ag. senado; Ricardo Stuckert/.

As cenas mais ultrajantes foram registradas no Supremo Tribunal Federal (STF), a instituição a quem cabe garantir o cumprimento da Constituição, o respeito à lei. O prédio parecia ter sido alvo de um bombardeio. Do lado de fora, os vidros foram quebrados, as pedras que ornamentam o entorno foram arrancadas e a famosa escultura da deusa grega que simboliza a Justiça foi pichada. Dentro, a destruição foi total. Os terroristas rabiscaram as paredes, espatifaram móveis, computadores, impressoras e aparelhos eletrônicos. As cadeiras e as bancadas do plenário onde os ministros se reúnem para os julgamentos viraram uma pilha de destroços. O sistema contra incêndio foi acionado e inundou o espaço. Antes de sair, os vândalos ainda foram ao gabinete da presidente da Corte, Rosa Weber, rasgaram documentos, atearam fogo em móveis e arriaram as calças para simular uma atividade intestinal, o ato mais revelador sobre o que existe na cabeça dessa gente. A ministra estava em casa quando foi avisada sobre a invasão. Acompanhou o horrendo desfecho pela televisão. Ao anoitecer, já com a situação controlada, foi ao local ver de perto os escombros — e chorou. A democracia havia passado por um teste, suportou, mas é preciso reagir.

  • Fonte: revista Veja Abril.