Na mesma intensidade da indignação e da raiva causadas aos extremistas de direita, entre eles os seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro, por causa da repercussão positiva pela premiação do filme “Ainda Estou Aqui” da Academia de Cinema do Oscar 2025, nos Estados Unidos, uma família do Acre, em Rio Branco, volta a viver dramas e pesadelos em tudo semelhantes ao que é contado na obra sobre a prisão, morte e desaparecimento de Rubens Paiva.
O filme conta a história da viúva do engenheiro e deputado federal cassado Rubens Paiva, Eunice Paiva, interpretada pela atriz Fernanda Torres, na busca pelo corpo do marido desaparecido, na luta para criar os cinco filhos do casamento e na resistência à ditadura militar – enfim, um enredo em tudo parecido com a história de vida de Maria Lúcia Melo de Araújo, que completa 90 anos de idade no próximo dia 17 de abril deste ano, esposa do ex-deputado federal e governador cassado do Acre José Augusto de Araújo, morto em 1971, mesmo ano em que sumiram com o cadáver de Rubens Paiva.
Rubens Paiva foi preso por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), em 20 de janeiro de 1971. Sua prisão aconteceu em sua residência, localizada no Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, sem qualquer mandado ou justificativa legal. José Augusto de Araújo morreu em 3 de maio de 1971, aos 41 anos de idade, num hospital do Rio de Janeiro, onde cumpria uma longa prisão imposta pelos militares, após ter cassado o mandato de governador do Acre num golpe militar e institucional aplicado pelo major do Exército Edgard Pedreira de Cerqueira e deputados estaduais que forjaram a votação da renúncia do governador, em 8 de maio de 1964.

José Augusto e sua família/ Foto: Reprodução
“Eu não entendia bem por que aqueles homens vinham buscar meu pai. Vi muito meus avós chorando e minha mãe também” – Ricardo Araújo, filho de José Augusto.
Assim que deixou o Palácio Rio Branco, o casal José Augusto e Maria Lúcia saiu do Acre imediatamente, para que o ex-governador não fosse preso pelos novos ocupantes do poder, no governo central e agora também no Acre. Mas a fuga de pouco adiantou. Localizado pelos militares no Rio de Janeiro, na casa dos pais de Maria Lúcia, onde o casal passou a morar, passou a receber seguidas intimações para comparecer à sede do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e outros órgãos da ditadura para longos depoimentos, que duravam dias às vezes.
“Eu não entendia bem por que aqueles homens vinham buscar meu pai. Vi muito meus avós chorando e minha mãe também. Eu tinha uns seis ou sete anos, mas lembro disso”, diz hoje, aos 62 anos de idade, o engenheiro civil Ricardo Augusto de Araújo, atual superintendente regional do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura) no Acre. “Minha mãe, pela idade avançada e pelo sofrimento, evita falar desses episódios, mas o filme e a repercussão em torno do que é contado certamente lhe abriram essas feridas na alma”, diz o engenheiro.

Governador José Augusto ao lado da esposa Maria Lúcia (Foto: Acervo histórico do Museu Universitário da Ufac)
Feridas que, mesmo com o casal Araújo afastado do Acre e no Rio de Janeiro, onde se abrigou na casa dos pais de Maria Lúcia, não cessaram. O ex-governador respondia a diversos processos com acusações de corrupção, conduta subversiva e comunismo. “Diziam que ele era comunista porque quis fazer reforma agrária”, lembra Maria Lúcia, mesmo com dificuldade para falar de uma época que, certamente assim como em Eunice Paiva, muito a maltratou.
Nas idas aos depoimentos, não há informações de que José Augusto tenha sido fisicamente torturado nessas descidas aos porões da ditadura, embora se saiba hoje que a sede do DOPS, localizada na Lapa, centro do Rio, que está em processo de tombamento para ser um centro de memória de defesa dos direitos humanos, naquela época foi palco de práticas de tortura a perseguidos pela ditadura, exatamente como eram, entre centenas de milhares de brasileiros, José Augusto e Rubens Paiva. “Ele chegava moído de tristeza. Hoje, entendo o motivo”, diz Ricardo Augusto.

José Augusto conseguiu sair do hospital e a própria liberdade através de um habeas corpus, em março de 1966/ Foto: Reprodução
É possível que, nessas idas e vindas, o acreano de Feijó José Augusto e o paulista de Santos Rubens Paiva, contemporâneos em tudo, com apenas dez anos de diferença de idade (José Augusto era mais velho), tenham se encontrado em meio ao horror dos interrogatórios. Se não nas salas de interrogatório, é possível que ambos tenham se esbarrado nos corredores do Congresso Nacional, já que ambos foram militantes do PTB e deputados federais – suplente em 1958, José Augusto acabou por assumir o mandato em 1960 e, em 1962, chegou a ser eleito, mas teve que renunciar porque também havia sido eleito governador do Acre (na época, a legislação permitia que um mesmo candidato postulasse cargos diferentes no Executivo e no Legislativo). Rubens Paiva foi cassado já em 1964, nos primeiros dias da ditadura, ao fazer um pronunciamento numa rádio de São Paulo, propondo que os trabalhadores paulistas se levantassem na época contra o então governador Adhemar de Barros, que apoiara o golpe militar. Cassado, teve os direitos políticos suspensos por dez anos e se exilou na Europa, mas, no final da década, voltou ao Brasil e passou a atuar politicamente na resistência à ditadura na clandestinidade, até ser descoberto e preso pelos militares que o mataram na tortura e até hoje sumiram com seu corpo.
José Augusto ficou preso durante sete meses enquanto convalescia no Hospital de Base, em Rio Branco, em 1965.
José Augusto só foi preso em 1965, ao retornar ao Acre após ter os direitos políticos cassados também por dez anos. Ele retornou ao Acre para um daqueles depoimentos em que queriam, no dizer da viúva Maria Lúcia, que confessasse que era comunista e que queria ajudar a implantar um governo de esquerda sob este regime, a desculpa dada pelos militares para derrubarem o presidente constitucional João Goulart, amigo pessoal tanto de Rubens Paiva quanto de José Augusto de Araújo. O governador cassado passou sete meses preso em Rio Branco. Já com a saúde fragilizada, por causa de problemas no coração, acabou cumprindo a pena no Hospital de Base de Rio Branco.
“Eu tinha que passar por cima dos cadáveres”, contou Maria Lúcia ao falar nos 50 anos do golpe militar, em 2014, na Assembleia Legislativa do Estado do Acre (Aleac), quando os deputados estaduais, por proposta de Edvaldo Magalhães (PCdoB), devolveram os direitos políticos do ex-governador, num gesto simbólico em respeito à sua memória. “O hospital era uma coisa horrível, um hospital de indigência. Quando eu tinha que visitar meu marido, tinha que passar por cima dos cadáveres para poder chegar até a saída do hospital. Foi uma das piores fases da minha vida. O que passava na minha cabeça era que eu tinha que lutar para sair daquilo porque era uma injustiça, e sem ter apoio nenhum porque estávamos na ditadura”, contou.
José Augusto conseguiu sair do hospital e a própria liberdade através de um habeas corpus, em março de 1966, e voltou ao Rio de Janeiro. No mesmo ano, no entanto, teve os direitos políticos cassados por dez anos pela ditadura.
Começava aí outra etapa da luta de Maria Lúcia em relação à memória do marido, também em tudo parecido com o que fazia a advogada Eunice Paiva. Contadora e professora nascida em João Pessoa, na Paraíba, Maria Lúcia vivia no Rio com os pais quando conheceu José Augusto de Araújo, então professor e líder estudantil. Foi amor à primeira vista, como no caso dos Paiva, segundo revela o livro e o filme “Ainda Estou Aqui”, escrito por Marcelo Rubens Paiva, o único filho homem do casal.
Assim como Eunice Paiva, Maria Lúcia, na ânsia de ajudar o marido no enfrentamento à ditadura, não só conheceria o horror bem de perto, como acabou se envolvendo diretamente com a política, na tentativa de combater o regime. Maria Lúcia, ao deixar o Acre, não tinha mais pretensão de voltar ao Estado onde fora primeira-dama de março de 1963 a maio de 1964, o tempo que durou o mandato do marido. Mas ela acabou indo além de Eunice Paiva, ao colocar o próprio nome na disputa para substituir o marido.
É ela quem conta naquele depoimento de 2014. Como José Augusto não poderia se candidatar, os aliados do governador cassado resolveram lançar o nome de Maria Lúcia a uma vaga para a Câmara Federal, em 1967. Ela estava grávida da segunda filha – Maria de Nazareth Lambert Araújo, hoje com 58 anos de idade, procuradora do Estado (aposentada) e que chegou a ser vice-governadora do Estado, de 2010 a 2014, na gestão do governador Tião Viana. A solução para o caso da gravidez foi Maria Lúcia escrever uma carta ao povo acreano, anunciando ser candidata a deputada federal.
“Quando ele disse que eu devia me candidatar, eu disse: ‘mas José Augusto, eu aqui desse jeito não posso nem ir ao Acre’. Porque já estava entrando no 7º mês de gravidez e ele, doente. Mandei uma carta para cá, dizendo o estado dele, como eu me encontrava, e o povo ia buscar essa carta. Fui a candidata mais votada. Tive o dobro dos votos do segundo colocado, que era ex-governador do Acre”, lembrou a ex-deputada. A alegria duraria pouco: dois anos depois, ela, Maria Lúcia, também seria cassada e teria os direitos políticos suspensos por 10 anos. Ela e mais sete deputadas que haviam sido primeiras-damas em seus estados e cujos maridos também haviam sido cassados.
Em 1978, com os direitos políticos recuperados, Maria Lúcia volta a se candidatar, mas não é eleita. Em 1982, com a vitória de Nabor Júnior para o governo do Estado, já nos anos finais da ditadura militar, é convocada a voltar ao Acre e assumir o cargo de diretora da Fumbesa (Fundação de Bem Estar Social), hoje equivalente a uma secretaria de Estado de Ação Social. Ficou no cargo até se desincompatibilizar para ser eleita deputada federal constituinte em 1986, cargo que exerceu até 1990, quando se aposentou.
Ao falar sobre os 50 anos do golpe militar, ela afirmou: “Essa ferida nunca sara”. “Quando vejo qualquer coisa alusiva à ‘revolução’ de 64, desligo a televisão porque me dá vontade de correr. Eu me digo que tenho que ter superado tudo isso, mas não supera assim não, a mágoa fica dentro, a ferida continua até a hora que Deus me levar”, disse.
Na noite de domingo (3), quando o mundo se dobrou em reverência ao cinema brasileiro, à arte dos atores e à literatura do país ao conceder a estatueta ao cineasta Walter Salles como diretor do melhor filme internacional, com uma história que se assemelha ao roteiro de sua vida e de tudo o que ela viveu ao lado da família, o coração de dona Maria Lúcia voltou a sangrar e abrir as feridas vivas por tudo o que passou. No entanto, como bem disse Eunice Paiva ao posar para uma fotografia do que restara de sua família na frente da casa, mesmo naqueles anos de chumbo: “Temos que sorrir. Ainda Estamos Aqui”.
Sim, dona Maria Lúcia Melo de Araújo: Ainda Estamos Aqui!