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Crise do metanol: da logística de exames à semelhança com ‘ressaca’, saiba como os casos são confirmados ou descartados

Há mais de uma semana, as atualizações diárias envolvendo as notificações sobre intoxicação por metanol invadiram o noticiário. Entre casos confirmados, suspeitos e descartados, a flutuação dos números ajuda a dar a dimensão da crise, mas também levanta dúvidas: afinal, como é feito o trabalho de detecção da substância, presente em bebidas alcoólicas adulteradas?

O vaivém relacionado ao rapper Hungria ilustra esse cenário incerto. O artista foi internado na última sexta-feira sob suspeita de ingestão do metanol, mas, anteontem, o Ministério da Saúde afirmou que o quadro não tinha relação com o solvente químico. Um dia depois, contudo, a assessoria do músico divulgou um exame no qual se constata a presença do metanol.

Especialistas ouvidos pelo GLOBO explicam que o desafio da triagem passa por dois obstáculos principais: os resultados dos testes de detecção de metanol podem levar dias para sair, e os sintomas de intoxicação podem se confundir, sobretudo nas primeiras horas, com uma ressaca comum.

Em São Paulo, palco da enorme maioria das notificações, os testes da rede pública estão concentrados no Laboratório de Análises Toxicológicas Forenses (Latof), do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto. As coletas de sangue e urina de todas as unidades de saúde do SUS do estado precisam ser congeladas e levadas até lá — uma logística complexa que leva cerca de 24 horas e contribui para que os resultados demorem.

— Para saber se uma pessoa está contaminada ou não, tem que fazer uma análise, preferencialmente no sangue, procurando o próprio metanol ou o ácido fórmico, um subproduto do metanol, que é o responsável pelos efeitos mais danosos no corpo. Encontrando uma dessas duas substâncias, pode-se dizer que a pessoa teve o contato com o metanol. O processo em si não demora, mas é que atualmente ele não é padronizado para ser feito no próprio hospital — explica Daniel Junqueira Dorta, professor do Departamento de Química da USP de Ribeirão Preto.

O resultado do teste sai em algumas horas, e a análise consiste em aquecer a amostra de sangue dentro do frasco, fazendo com que os compostos voláteis subam. Com uma agulha, é coletada a amostra que fica nessa atmosfera aquecida, na parte de cima do frasco, e essa amostra é analisada em um processo chamado cromatografia gasosa, que vai apontar se há metanol ou ácido fórmico. Também é possível fazer o teste por meio da coleta de urina.

Outras instituições também estão aptas a fazer esse trabalho, como o Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) da Unicamp, em Campinas, e a Fiocruz, no Rio. Laboratórios privados também estão fazendo as análises, acionados por hospitais particulares — algumas das confirmações vieram por esse caminho.

Casos suspeitos

 

Segundo as orientações do Ministério da Saúde, devem ser considerados casos suspeitos aquelas pessoas que consumiram bebida destilada e apresentam persistência ou piora dos sintomas entre seis a 72 horas após a ingestão. Esses sintomas podem ser gastrointestinais ou relacionados ao sistema nervoso central: náuseas, vômitos, dores abdominais e de cabeça, geralmente de forte intensidade, confusão, vertigem, amaurose (perda da visão), borramento visual e midríase (pupila dilatada).

As recomendações da Secretaria de Saúde de São Paulo são semelhantes, e indicam ainda que os profissionais classifiquem como caso grave se o paciente apresentar cegueira, choque, pancreatite, insuficiência renal e lentidão de movimentos corporais. Todo caso suspeito deve ser notificado para o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.

As autoridades orientam a buscar por um serviço de saúde o mais rápido possível se esses sintomas surgirem, pois as chances de cura são maiores se o atendimento for feito no início. O rapper Hungria, por exemplo, foi internado na semana passada no DF Star, em Brasília, com sintomas que incluíam cefaleia, náuseas, vômitos e turvação visual, semelhantes aos efeitos causados pelo metanol.

Patrícia Melo, presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), que auxiliou, junto a outras entidades, o Ministério da Saúde a fazer o fluxograma de atendimento para casos suspeitos, explica que, quanto maior o nível de metanol no sangue, mais graves os sintomas. No entanto, como o resultado demora, não é possível esperar por ele para começar o tratamento. Além disso, como o avanço da intoxicação pode ocorrer em poucas horas, ela indica que o paciente sintomático seja encaminhado para hospitais com UTI logo de início:

— Se um paciente tem um nível sérico de metanol no sangue acima de 50 miligramas (mg) por decilitro (dL), eu já sei que é gravíssimo, mas eu não tenho esse resultado na mesma hora, pode demorar dias — frisa. — O nível sérico do metanol acima de 50 é gravíssimo, e acima de 20 já indica necessidade de terapias.

A médica explica que alguns sinais de alerta de diferenciação entre uma ressaca e uma possível intoxicação por metanol são a desproporção dos efeitos para a quantidade de bebida ingerida, sintomas que não melhoram com o passar do tempo e se há mais pessoas que tomaram o mesmo drinque e apresentaram manifestações semelhantes. Outra indicação é medir a acidez do sangue, algo disponível em UPAs e hospitais.

— Nas primeiras horas, o paciente vai ter uma náusea, um vômito, uma dor abdominal, tontura, que é uma coisa que a embriaguez também causa. Mas a pessoa tomou dois drinques e está vomitando sem parar, com uma dor abdominal terrível, já se passaram 12 horas e ele está piorando ao invés de melhorar? Aí não é normal — exemplifica.

Testagem

 

O Ministério da Saúde anunciou parcerias com a Unicamp e com a Fiocruz para testagem de metanol em pacientes. Na última segunda-feira, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), disse que pretende “melhorar a logística” e ampliar a capacidade de testagem do estado. Devem ser firmadas parcerias com outros laboratórios nos próximos dias.

Mas nem todos os casos suspeitos precisam de análise laboratorial e, por vezes, é possível descartar a contaminação de forma clínica.

— Muitas vezes a gente acaba recebendo pacientes que não preenchem a definição de caso, que têm o que chamamos de “etanolemia”, que é o aumento do etanol no organismo, e não metanol. São pessoas que beberam muito e estão com uma ressaca, vamos dizer assim — destaca Tatiana Lang D’Agostini, diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE) do estado de São Paulo.

Procedimento inicial

 

Quando o paciente apresenta um quadro que indica intoxicação por metanol, o procedimento inicial é a verificação da gravidade dos sintomas — em casos mais graves, a pessoa deve ser encaminhada para uma UTI e começar a receber o antídoto, o etanol, mesmo antes do resultado do teste. Segundo Tatiana, o estado tem demorado cerca de 24 horas para mandar as amostras de sangue ou urina para o laboratório de referência em Ribeirão Preto.

— Quando a unidade de saúde vê que o paciente tem esse quadro, ela pode realizar a coleta de sangue total, e congelar imediatamente, ou a urina, e encaminhá-la para um dos 12 laboratórios regionais que temos no estado. O Instituto Adolfo Lutz é responsável pela logística até Ribeirão Preto. Se eu recebo a amostra hoje de manhã, consigo encaminhar ainda hoje, mas se recebemos à noite, só no dia seguinte. Estamos demorando cerca de 24h para fazer essa logística, mas o processo está ficando mais ágil — diz Tatiana.

No Paraná, onde há três casos confirmados de intoxicação pela substância, a análise tem sido encaminhada para a Polícia Técnico-Científica, que também tem feito testes para verificar a presença de metanol em bebidas alcoólicas apreendidas.

O secretário de Saúde Beto Preto destaca, entretanto, que há outros exames que podem ajudar no diagnóstico. O próprio Ministério da Saúde publicou um fluxograma com o protocolo que as unidades de saúde devem seguir, e com os exames que podem ser feitos nos próprios hospitais e UPAs para ajudar no atendimento.

— A alteração de desidrogenase láctica, uma acidose metabólica constatada em gasometria arterial, é uma coisa que pode chamar a atenção. Mas o importante é o paciente ser atendido. Se há uma série de sinais e sintomas, se houve ingestão alcoólica e, se porventura, o quadro remete a uma intoxicação por metanol, o hospital vai começar a manter os sinais vitais desse paciente, tratar com antídotos. Ter ou não o diagnóstico talvez não seja a principal informação para o tratamento. Mas a informação é fundamental para a investigação que segue, porque tem que verificar de onde veio, com quem veio, de qual garrafa, de onde chegou essa garrafa, quem vendeu — opina.

Uma preocupação aventada pelo secretário, porém, é em relação ao antídoto. Ele conta que foi preciso usar etanol para tratar os três pacientes que estão internados em estado grave, e que apenas uma pessoa pode precisar de 40 a 60 ampolas.

— Não estamos tranquilos. Já recebemos 160 ampolas, e agora mais 60, do Ministério da Saúde e de empréstimo da Secretaria do Estado da Saúde de Minas. Mas ninguém se prepara para uma emergência como essa, né? O Ministério está correndo atrás de tentar viabilizar mais tratamentos, um paciente grande, se for fazer uso do medicamento na dose indicada, praticamente consome 40, 50, 60 ampolas, já usamos em três pacientes e vamos precisar de mais.

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