Após um fim de semana que pôs em xeque a continuidade do acordo de cessar-fogo na Faixa de Gaza, um dos emissários do governo americano para a região lançou dúvidas sobre uma das etapas mais cruciais do plano: em entrevista coletiva, Jared Kushner afirmou que considera iniciar a reconstrução de Gaza pelos territórios controlados por Israel, e que não haverá verbas para regiões onde o Hamas ainda está presente.
— Há considerações acontecendo agora na área controlada pelas FDI (sigla usada para as Forças Armadas de Israel) — disse Kushner, defendendo a visão de uma “nova Gaza” que permita dar aos civis “um lugar para ir, um lugar para conseguir empregos, um lugar para viver”.
Na prática, segundo avaliação do jornal israelense Haaretz, a declaração indica que não foi completamente abandonada a ideia de uma “cidade humanitária” em áreas controladas por Israel, algo discutido pelo Gabinete do premier Benjamin Netanyahu há alguns meses e criticado por especialistas como um crime de guerra. Também, ainda segundo análise do Haaretz, se a reconstrução realmente começar enquanto o Exército de Israel ainda detém o controle de 53% do território — ao ter recuado para uma primeira linha prevista no plano de cessar-fogo de Donald Trump—, pode cimentar a situação atual no terreno, prevenindo uma retirada completa no futuro.
Ampla destruição
Os dois anos de guerra no enclave causaram quase 70 mil mortes e uma destruição poucas vezes na História moderna. Estimativas da ONU apontam que em locais como a Cidade de Gaza, 92% das estruturas foram destruídas, e com 61 milhões de toneladas de entulhos.
— Creio que o exemplo mais próximo seja os bombardeios da Segunda Guerra Mundial, principalmente na Alemanha, que foi bastante destruída — afirmou ao GLOBO Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). — E uma dessas principais questões em Gaza, como foi na Alemanha, será a remoção desse entulho, dessas construções destruídas. É um trabalho importante e complexo a ser feito.
Sob os prédios devastados, pode haver restos mortais de até 10 mil desaparecidos, além de substâncias nocivas e 7,5 mil toneladas de munições — segundo a ONU, 10% de todos os explosivos lançados sobre Gaza não foram detonados. Em uma terra arrasada, 2,1 milhões de pessoas dependem de ajuda, cuja entrada no enclave ocorre a conta gotas.
Na quinta-feira passada, a Autoridade Nacional Palestina deu uma estimativa para o custo da reconstrução: US$ 67 bilhões. Mesmo antes do número ser divulgado, a lista de interessados era ampla, incluindo o Catar — que atuou como mediador entre Israel e Hamas —, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, a Turquia e os EUA.
— Isso envolve uma questão de projeção de poder, na qual os países que foram responsáveis pela reconstrução de Gaza esperam ter algum tipo de retorno político, econômico e geopolítico — opinou ao GLOBO Roberto Uebel, professor de Relações Internacionais da ESPM. — Aqueles que reconstruírem Gaza, que financiarem essa reconstrução, criam uma relação de dependência, e também um bolsão de influência no Oriente Médio.
Passo à frente
Neste processo, o Catar saiu à frente. Após a assinatura da primeira fase do acordo, o premier, Mohammad bin Abdulrahman al-Thani, disse que estava pronto para liderar os esforços de reconstrução, e confirmou que equipamentos para a remoção de entulho começaram a entrar em Gaza. Segundo a ministra da Cooperação Internacional, Mariam al-Misnad, o objetivo “é restaurar a esperança e devolver a vida ao seu curso normal”.
Há um grande porém na presença do Catar em Gaza. O país abriga líderes do Hamas — e foi bombardeado por Israel em setembro — e não parece incomodado com sua participação em um futuro governo. Grupos pró-Israel acusam o emirado de financiar o grupo, e não querem o país envolvido no pós-guerra.
Mas o Catar tem amigos influentes. Os laços com a família Trump e com Kushner eram intensos antes do retorno do republicano à Casa Branca, centrados em negócios nos setores imobiliário e financeiro. Em setembro, após atacar membros do Hamas em Doha, o premier israelense, Benjamin Netanyahu, foi obrigado a se desculpar por pressão americana.
— O fato de o Catar financiar em algum momento o Hamas ou conversar com diferentes atores não elimina o fato de que é uma relação muito íntima, não só com os EUA, mas com a família Trump — afirmou ao GLOBO Monica Herz, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. — E não podemos esquecer de como o governo Trump não estabelece nenhuma separação entre o público e o privado. Essa fronteira foi diluída.
Pelo lado dos EUA, Kushner está envolvido em planos controversos para o futuro de Gaza. No ano passado, disse ver potencial nas propriedades à beira-mar, e sugeriu que a população fosse realocada durante a reconstrução. A ideia inspirou Trump, que em fevereiro defendeu uma “Riviera” no território, com a expulsão dos moradores. Em setembro, foi associado a um projeto para a “Gaza do Futuro”, com cidades tecnológicas e — mais uma vez — a realocação “voluntária” dos civis, um crime de guerra.
— A reconstrução pós-guerra é um investimento interessante para esse setor de construção civil e imobiliário de uma forma geral — afirma Herz. — Neste caso em particular, o nível de destruição é de tal ordem que perguntamos qual será a relação entre essa Gaza reconstruída e a História palestina naquela região?
Papel do Hamas
No Parlamento israelense, há pouco mais de uma semana, Trump reiterou o papel das monarquias do Golfo na reconstrução, como o Catar, os Emirados Árabes Unidos — que se dizem prontos para participar dos esforços — e da Arábia Saudita. Mas o americano quer algo mais de Riad do que alguns bilhões de dólares: a adesão aos Acordos de Abraão, o plano para a normalização de laços com Israel, já firmado pelos Emirados, Bahrein e Marrocos. No mês que vem, Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro saudita, visitará a Casa Branca, segundo a imprensa americana.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/Y/t/0qjbo8RG6PBdnocpSp0A/112681610-palestinian-militants-of-the-ezzedine-al-qassam-brigades-the-military-wing-of-hamas-stand.jpg)
Os sauditas, como os emiradenses, exigem o desarmamento do Hamas e sua exclusão de uma futura administração. Isso já causa tensões com o Catar e com a Turquia, que mantém laços com o grupo palestino e quer participar da reconstrução. O país cita sua experiência em nações que passaram por conflitos, como Afeganistão, Bósnia e Herzegovina e Kosovo, mas quer enviar tropas para proteger seus equipamentos e trabalhadores. Essa presença deve causar problemas com Israel — com quem Ancara tem péssimas relações — e com rivais do Hamas.
— É muito difícil pensarmos na reconstrução de Gaza se essa etapa, o desarmamento do Hamas, não for vencida. É como se fosse um pré-requisito — afirma Uebel. — O que vemos é que Israel continua atacando posições do Hamas, e o Hamas parece ter algumas divisões internas dentro de Gaza.
E há o fator Israel: a manutenção do cessar-fogo não está garantida, como visto no final de semana, quando Netanyahu afirmou ter lançado 153 toneladas de bombas sobre Gaza. Não há discussões sobre a retirada das forças israelenses, e falas como a de Kushner levantam questões se a Casa Branca quer mesmo ver todos os militares retornando para casa (como querem as nações árabes, que insistem em passos para um futuro Estado palestino).
— Acredito que o maior desafio não seja a reconstrução física de Gaza, mas sim a reconstrução política, que envolve atores muito complicados como Israel e o Hamas. Os outros países árabes vão tentar interferir no processo de reconstrução, trazendo seus interesses econômicos. Há um problema técnico, mas ele é superável. Mas as questões econômicas e políticas ainda são o maior problema — concluiu Bonduki.