A arte sempre foi, ao longo da história, um agente transformador da sociedade. Pessoas de todos os lugares, credos, cores e classes sociais, já foram tocados por alguma forma expressão artística e, a partir dali, enxergaram outras possibilidades. Quando essa força é direcionada a quem foi retirado do convívio social e está privado de liberdade, o impacto costuma atravessar muros, grades e rótulos.
Na parte central do bairro Distrito Industrial de Rio Branco, dentro de uma pequena sala do galpão do Polo Moveleiro do Iapen, encontramos algo que vai muito além de madeiras, ferramentas, pó-de-serra e um cheiro forte de verniz: a Oficina de Luthieria “Sons da Liberdade”, a primeira e única fábrica de instrumentos musicais com mão de obra prisional do Brasil.

Essa é primeira e única fábrica de instrumentos musicais com mão de obra prisional do Brasil/Foto: ContilNet
O ambiente é simples. Estantes com moldes, ferramentas alinhadas por função, som dos ventiladores que amenizam o calor. Sobre a bancada, tampas, laterais e escalas aguardam lixa e verniz. As mãos calejadas de quem cumpre pena no sistema prisional transformam madeira ilegal, apreendida em diversos órgãos de fiscalização, em violões de alta qualidade.
Cada instrumento tem dois destinos: chegar à comunidade por um valor simbólico, garantindo a continuidade do projeto, ou marcar a vida de quem o construiu, como um certificado palpável de recomeço.
Oficina de Luthieria: “Sons da Liberdade”/Foto: ContilNet
Como tudo começou
A ideia saiu do papel pelas mãos de Jardel Costa da Silva, policial penal e luthier profissional. “Antes de ter algo escrito, nós viemos para este espaço que tinha bastante entulho e fizemos toda a limpeza”, lembra Jardel, que em 2023 recebeu o convite para integrar a equipe do Polo Moveleiro.
Jardel Costa da Silva, policial penal e luthier profissional/Foto: ContilNet
A oportunidade veio logo depois, com a abertura do edital de penas pecuniárias do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC), em parceria com o Governo do Estado. O projeto foi aprovado e a “Sons de Liberdade” nasceu, unindo arte, sustentabilidade e ressocialização, inspirando procuras de outros estados.
O diretor de Reintegração Social do Iapen, André Vinício, resume o ganho institucional:
“Esse projeto é inovador, é o único no Brasil. Nós somos referência e já fomos procurados para implantar esse modelo em outros estados.”
Diretor de Reintegração Social do IAPEN, André Vinício/Foto: ContilNet
O processo de criação
Além de ter um conceito revolucionário em sua composição, o trabalho manual é intenso, exigindo dedicação e precisão. Os alunos percorrem todas as etapas da construção do violão: estrutura, afinação do tampo, colar, lixar, vernizar, regular. “Por aluno, um violão leva em média de um mês a um mês e meio de trabalho”, explica Jardel. A rotina é diária, de segunda a sexta, com supervisão técnica constante.
As madeiras apreendidas, matéria-prima principal, chegam ao Polo por parcerias oficiais/Foto: Reprodução
As madeiras apreendidas, matéria-prima principal, chegam ao Polo por parcerias oficiais: “Quando há uma apreensão, os órgãos fazem contato com o Iapen; o presidente autoriza e nós recolhemos as madeiras”, detalha André. Já as tarraxas, trastes, cordas e vernizes são comprados com a receita obtida na venda dos instrumentos.
Os violões disponíveis no mercado apresentam grande variação de preço, dependendo do tipo de fabricação. Modelos industrializados, produzidos em larga escala, costumam ter valores mais acessíveis, indo de cerca de R$ 400 a R$ 900. Já os violões feitos manualmente por luthiers costumam ficar na faixa de R$ 2.500 a R$ 20 mil, dependendo da madeira, do acabamento e do tempo de produção.
A rotina é diária, de segunda a sexta, com supervisão técnica constante/Foto: ContilNet
Em uma amostra de produção que reuniu empresas, professores, e profissionais da Escola de Música Acreana, os violões foram testados e avaliados: “Perguntei a um gerente de loja se colocaria o instrumento à venda. Ele disse: ‘Hoje, nesse nível de qualidade e acabamento, eu venderia por R$ 4.500’”, relata André.
Porém, os instrumentos são comercializados por R$ 1.500, valor simbólico que retroalimenta a oficina, mantém o ciclo de formação e abre novas vagas, além de garantir acessibilidade para a comunidade. Até aqui, a luthieria formou 13 alunos e produziu cerca de 40 violões, com perspectiva de crescimento.
W. O. D. P., 39 anos, músico há 22, cumprindo pena desde 2021, entrou na oficina em janeiro de 2025/Foto: ContilNet
O apenado W. O. D. P., 39 anos, músico há 22, cumprindo pena desde 2021, entrou na oficina em janeiro de 2025 e é um dos alunos mais engajados. Ele nunca havia visto a construção de um instrumento. Hoje, descreve a experiência como um impacto positivo e transformador: “A primeira sensação é um susto. Ninguém imagina tirar um violão de um pedaço de madeira. Quando entende o processo, a mente desocupa, vai limpando aquela sujeira do passado.”
Se o violão pronto encanta olhos e ouvidos, o intangível é que o mais impressiona. “Eu noto neles a alegria quando o instrumento está pronto. É transformador”, diz Jardel.
“A arte modifica as pessoas”: o impacto humano
Parte crucial do projeto, arte e disciplina caminham juntas. De acordo com Jardel, a música pode ser essencial para quem nunca teve oportunidade. “Muitos carregam uma história de ausência, tanto de assistência de Estado, como de acesso, de referências e, quando chegam aqui, descobrem uma outra possibilidade”.
Jardel também ensina a tocar. Segundo ele, é “uma consequência natural” do contato diário com os instrumentos/Foto: ContilNet
Além de ensinar a construir, Jardel também ensina a tocar. Segundo ele, é “uma consequência natural” do contato diário com os instrumentos: “Tem alunos aqui que nunca tocaram na vida. Eu chego e já estão fazendo ritmo, acorde, melodia. A curiosidade desperta, e a arte vai moldando o comportamento.”
Ele acredita que a música oferece disciplina, escuta e paciência — virtudes que extrapolam a técnica e ajudam no processo de ressocialização. “Você só consegue fazer um apenado refletir quando ele vê outro trabalhando, se dando bem. Aí ele começa a querer aquilo pra ele”, completa.
Até aqui, a luthieria formou 13 alunos e produziu cerca de 40 violões, com perspectiva de crescimento/Foto: ContilNet
Para W. O. D. P., a oficina é a prova de que a vida no presídio não precisa ser o fim: “O presídio, pelo menos aqui onde eu estou, ele não é um lugar de morte, mas é um lugar de recomeço.” Ele ainda enfatiza o tratamento humanizado dado por Jardel: “Ele não nos trata como presos, ele nos trata como amigos, como pessoas que querem ser ressocializadas.”.
Trabalho reconhecido: a regra da remissão
O projeto também organiza pontes com o sistema de Justiça. O trabalho realizado na oficina é uma forma inovadora e criativa de cumprir a Lei nº 7.210/84, Lei de Execução Penal (LEP), que estabelece o dever do Estado de proporcionar meios para a reintegração social do condenado.
O projeto também organiza pontes com o sistema de Justiça/Foto: ContilNet
O Artigo 126 da LEP permite que condenados em regime fechado ou semiaberto reduzam parte do tempo de pena por meio de trabalho ou estudo, estabelecendo a regra: a cada 3 dias de trabalho, o condenado tem 1 dia de pena remido.
No Acre, dos 5.388 presos que cumprem pena em unidades penitenciárias do estado, 2.989 estão trabalhando em alguma área, seja interna ou externa, o que representa 55% da população carcerária — um percentual que supera significativamente a média nacional, de 25,4%.
Segundo André, o desenho institucional do projeto busca responder a uma questão essencial: “Como esse cidadão retorna à sociedade? Queremos que ele volte diferente do que entrou, capacitado. O ganho é de todos: da gestão, dos alunos e das famílias. Eles saem de um ambiente fechado para um espaço aberto de trabalho. Queremos que voltem com uma profissão.”
No Acre, dos 5.388 presos que cumprem pena em unidades penitenciárias do estado, 2.989 estão trabalhando em alguma área, seja interna ou externa, o que representa 55% da população carcerária/Foto: ContilNet
Ao ver colegas avançando, trabalhando fora, tocando na noite ou atuando como luthiers, os novos participantes projetam um caminho possível. É o efeito de espelho que, segundo o idealizador, sustenta a transformação.
Como forma de incentivo, para cada três violões fabricados pelo apenado, dois são destinados ao sistema prisional, enquanto um permanece sob sua posse como prêmio, podendo ser comercializado ou entregue a familiares.
O valor sentimental do violão de prêmio supera o financeiro. “Quando eu olhar, vou saber de onde saí”, afirma W. O. D. P., que planeja usar o instrumento em seu estúdio de gravação e, no futuro, montar sua própria luteria.
“Não é um lugar de morte, mas é um lugar de recomeço”
Na luthieria “Sons da Liberdade”, cada violão pronto é um diploma. Mais do que trabalho e técnica, o programa une pessoas que acreditam no potencial daquelas mãos, tantas vezes associados ao erro com aqueles que fazem do Estado uma verdadeira ferramenta de mudança social.
Na luthieria “Sons da Liberdade”, cada violão pronto é um diploma/Foto: ContilNet
W. O. D. P. resume: “Como o próprio projeto diz, é som da liberdade. Estamos ganhando verdadeiramente uma liberdade e um novo roteiro na nossa história.”