Até cerca de um ano atrás, X., de 14 anos, nunca havia colocado os pés na Penha, Zona Norte do Rio. Tampouco conhecia os complexos da Penha e do Alemão. O primeiro contato veio pela tela do celular: a partir de “curtidas” em fotos de perfis de integrantes da Tropa do Urso — grupo ligado ao traficante Edgar Alves de Andrade, o Doca, chefe do Comando Vermelho (CV) nos dois conjuntos de favelas —, X. virou seguidor e passou a frequentar algumas das 26 comunidades da região. Em pelo menos três ocasiões, seus parentes, que moravam com ele numa cidade da Baixada Fluminense, o viram subir na garupa da moto de um homem que vinha buscá-lo em casa.
O adolescente foi um dos 117 suspeitos mortos durante a megaoperação das polícias do Rio. Foi pelas postagens em plataformas que a Polícia Civil concluiu que o garoto e outras oito pessoas mortas na ação tinham ligação com o CV. Postagens ligadas às facções tomaram as redes sociais: fotos e vídeos de homens com fuzis, drogas e ameaças de roubo circulam amplamente.
Janela de exposição
Com milhares de seguidores e visualizações, o tráfico passou a ter mais uma janela de exposição para influenciar jovens e cooptar novos integrantes. Para o subsecretário de Inteligência da Secretaria de Segurança, delegado Pablo Sartori, o CV desenvolve ação coordenada de marketing para ganhar simpatizantes fora das favelas que domina. Esse fenômeno surgiu, segundo ele, de cinco anos para cá:
— Organizações criminosas como o Comando Vermelho buscam projetar, para além de seus territórios, uma imagem positiva de liberdade e de vida de luxo. Criminosos posam em motos e carros caros roubados, vendendo a falsa ideia de que o tráfico é a única forma de mudar de vida. E, quando morrem, recebem homenagens como “saudades eternas”, para reforçar a narrativa de que não foram esquecidos e de que o tráfico se importa com seus mortos, que não seriam pessoas más. É um marketing direcionado à sociedade.
O delegado conta que sua equipe, assim como as das subsecretarias de Inteligência das Polícias Civil e Militar, monitora as redes usadas pelas facções — principalmente pelo CV, que costuma se exibir mais. Segundo ele, ao identificar postagens de apologia ao crime, envia relatórios às polícias Civil e Federal para a instauração de inquérito.
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Nas redes, a alcunha “bebel” é usada por menores para compartilhar cenas da vida no crime, ostentando celulares e joias roubadas. Muitas vezes, o nome de usuário inclui os números “55” ou “57”, referência aos artigos de furto (155) e roubo (157) do Código Penal.
No ano passado, PMs prenderam dois adultos e um menor acusados de furtar celulares na Barra. Ao chegarem à delegacia, agentes da Polícia Civil perceberam que eles eram alvos de uma investigação que identificou assaltantes que se vangloriavam dos crimes nas redes sociais.
O grupo se aproveitava de motoristas e passageiros parados com vidros abertos para furtar celulares ou ameaçava as vítimas com pedras e outros objetos. Ao ser preso, Kevyn Natham Domingos, de 18 anos, admitiu que ele e os cúmplices mantinham perfis — um deles com o nome “bebel” — onde se exibiam “para conseguir mais seguidores”.
Segundo as investigações, um deles, que não havia sido detido, chegou a reclamar em uma postagem da prisão dos comparsas, dizendo que eles formavam o “trio do ódio”. Kevyn foi condenado no ano passado a um ano de prisão, em regime aberto, por formação de quadrilha.
O GLOBO identificou diversas contas no Instagram e no TikTok que exibem o cotidiano do crime no Rio. Numa delas, com 26,5 mil seguidores e quase meio milhão de curtidas, os vídeos acumulam centenas de milhares de visualizações. Um dos mais assistidos — 356 mil cliques — mostra um homem de costas, numa favela, empunhando um fuzil.
Para driblar a moderação das plataformas, o que pode derrubar as contas, os traficantes evitam mostrar o armamento por inteiro. Quando o fazem, recorrem a edições: borram o fuzil ou colocam figurinhas infantis por cima.
Outra hashtag popular entre traficantes do CV é “tropa do urso”, referência a Doca, conhecido como Urso. Nessas postagens, criminosos aparecem armados, muitas vezes vestindo trajes camuflados.
As publicações também são usadas para incentivar a morte de rivais. Um perfil divulga a imagem de três homens com fuzis. A foto vem acompanhada de emojis de fogo — simbolizando violência — ao lado de um coelho e de um jacaré, referência aos traficantes Wallace de Brito Trindade, o Lacoste, e William Yvens da Silva, o Coelhão, chefes do Terceiro Comando Puro (TCP).
Com 34 anos de experiência no trabalho com menores em conflito com a lei, o procurador de Justiça titular da 2ª Procuradoria Infracional, Márcio Mothé, explica que há pessoas dedicadas a recrutar jovens para o crime pelas redes sociais.
— O início na vida do crime é na adolescência, numa escalada. A ideia é de glamour: mulheres, dinheiro, poder. Vimos que, entre os mortos na megaoperação, a maioria tinha passagens pela polícia. Isso mostra como a Justiça falha, pois perdeu a oportunidade de ressocializá-los. Para se chegar à Justiça, é porque falhou um monte de gente — afirma.
Alessandro Visacro, analista de segurança e defesa, e autor de “A guerra na era da informação”, explica que as facções criam ideologias e se apropriam das plataformas digitais como ferramenta de difusão:
— Qualquer jovem quer ter mais seguidores nas redes. E o crime tem se aproveitado desse espaço cibernético. Há quem use para aplicar golpes, mas outros o exploram com base na cultura criminal.
X. passou a morar com o pai, numa casa simples na Baixada Fluminense, após queixas da mãe sobre o comportamento do filho. X. tirava fotos na porta da escola, fingindo ir às aulas. Logo, as reclamações sobre as faltas chegaram à família.
O pai, auxiliar de serviços gerais, lidava bem com o caçula dos cinco filhos. Os demais estão criados.
— Ele sempre foi tranquilo. Mas, há um mês, quando estava no banho, deixou o WhatsApp aberto. Tomei um susto. Tinha uma foto dele segurando um fuzil. Dei conselho, levei ele para ouvir conselho dos pastores da igreja. Sentei com ele e falei: meu filho, você tem que entender que esse caminho é caminho de prisão. Prisão é você estar numa cadeia, algemado. Teu pai anda onde quiser. A melhor coisa é ter liberdade — lembrou.
O filho tinha saído de casa no dia 24 sem avisar. Os dois se falaram todos os dias até a terça-feira, 28, data da megaoperação. O adolescente não atendeu o telefone.
— Sabia que algo tinha acontecido. Vi fotos nas redes sociais dos mortos na Penha. Reconheci o corpo dele pela bermuda e pelo casaco pretos que usava. Eles acham que aquele mundo é o verdadeiro. Meu filho escolheu esse caminho.
Plataformas dizem coibir
Pedindo para não ser identificada, a mãe de um traficante de 18 anos, preso no ano passado e condenado a 12 anos, diz que tentou impedir a entrada do filho no crime. Apesar das dificuldades financeiras, diz que nunca faltou nada ao jovem. Agora, usa o calvário que enfrentou para alertar filhos de amigas e parentes:
— Não basta largá-los com o celular ou não olhar o que estão assistindo nas redes.
Procurado, o Tik Tok removeu os perfis encontrados pelo GLOBO por entender que “violavam as Diretrizes da Comunidade”. A empresa disse que combina a tecnologia com revisão humana para identificar e remover publicações que ferem as regras da plataforma. A Meta, dona do Instagram, informou que suas políticas não permitem o uso para promover atividades criminosas ou conteúdos que glorifiquem, apoiem ou representem organizações e indivíduos perigosos. “Removemos esse tipo de conteúdo sempre que identificamos violações e estamos continuamente aprimorando nossa tecnologia para detectar e lidar com atividades suspeitas. Também incentivamos as pessoas a denunciar qualquer conteúdo que considerem contrário aos nossos Padrões da Comunidade, ajudando-nos a manter nossas plataformas seguras para todos”, afirmou em nota. Os perfis enviados pela reportagem, diz a Meta, foram removidos.