Se a gente ouvir “Eita” nem desconfia que Lenine cogitou parar de fazer música. O disco que o cantor e compositor de 66 anos lança hoje, após emergir de uma baita crise existencial que o fez questionar a funcionalidade de sua arte, é prova concreta do reencontro com o prazer de seu ofício. O mergulho nas profundezas da própria existência pode ter sido doído, mas fez com que ele entregasse o álbum mais pessoal de sua carreira.
Cada uma das 11 faixas inéditas conta uma história particular repleta de significados e carga emocional. Tem canção dedicada a Anna Barroso, amor de sua vida, aos pais, ao neto Otto. É um repertório costurado pelo fio do afeto, em que se propõe “o amor como vacina”, como diz verso de “Foto de família”. Parceria com o filho João Cavalcanti, a composição tem como inspiração a única imagem em que os pais de Lenine estão cercados por todos os 13 netos.
Descalço na sala de sua casa, na Urca, Zona Sul do Rio de Janeiro, o pernambucano levanta da poltrona, alcança o porta-retratos e mostra à repórter:
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— Olha isso, Maria! Não é brincadeira o tanto de amor que esses dois espalharam no mundo — diz o artista, apontando Daisy e Geraldo no centro do retrato.
É essa mesma imagem que Maria Bethânia está segurando quando surge no audiovisual que acompanha “Eita”. O média-metragem marca a estreia de Lenine na direção de cinema e amplia o universo sensorial de suas canções.
A baiana é uma das participações do álbum, verdadeira declaração de amor ao Nordeste. Ode reiterada por outras vozes nordestinas, como a do presidente Lula, Ivete Sangalo, Djavan e Alcione, ouvidas bradando seus “eita” na música título.
“Eita” é um disco bastante luminoso e esperançoso para quem pensou em largar a música.
Passei um período depressivo, que foi a pandemia e o pandemônio. Naquele momento, achei que não queria mais. O que antes fazia com tanto prazer, não tinha mais prazer nenhum em fazer. Teve ainda o nascimento precoce do Otto, filho do Bruno e também “pai” do “Eita” (Bruno Giorgi é filho de Lenine e produtor musical do disco), que veio ao mundo com menos de seis meses. A família se mobilizou muito porque foram três meses de internação.
E foram dez anos sem você fazer um disco de estúdio, desde “Carbono”, de 2015.
A gente lançou o “Em trânsito” que, apesar de não ser feito no estúdio, foi pensado como se tivesse sido. É um take só, com banda, e tem as músicas inéditas que dariam um disco de estúdio. Só que foi um show. Parece que faz diferença, mas para mim não faz. Estou desde 2018 sem fazer um trabalho de estúdio. Nesse sentido, “Cabono” foi o último disco de estúdio, sim. Fiquei avesso, inclusive, a tocar, a fazer show, que sempre foi o que me mobilizou. Fiz canções para fazer disco, show, rodar, viajar. Achei que nem isso eu queria mais.
Então, veio Bruno e te resgatou no fundo do poço…
Ele estava sempre produzindo, mixando, masterizando bandas indies. É versátil, sempre se interessou por todas as etapas de fazer música. E passou a me chamar estrategicamente. Quando descobriam que ele era meu filho, pediam uma canja. Ele sabe que gosto. Fiz com Tuyo, com Far From Alasca, anavitória, Angra. Ele dizia: “Se diverte pra caramba, que porra é essa de dizer que não quer mais?”. A partir da segunda gravação, propôs que nos encontrássemos toda semana, porque tinha muita demanda (risos).
E isso virou toda quarta-feira…
Quando ele me mostrou um esqueleto que eu já tinha criado tempos antes… “Eita!”… Tinham cinco ou seis canções. Gostei do que ouvi, achei que “Eita” era um caminho bom. Propôs que a gente voltasse a fazer show, e aquilo me deixou assim… Porque não era com todo mundo que eu queria tocar. Fui muito mal acostumado a vida toda a só trabalhar com o que e com quem eu gosto. Me impus isso. E, na época, não estava querendo dividir nada. Mas ele disse: “Não! Faz um show!”. E gente bolou o “Rizoma” (de 2022).
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E, assim, redescobriu o prazer de estar no palco…
Isso foi incrível porque, no primeiro show, percebi que fui completamente imbecil em pensar que poderia viver sem música. E aí foi fácil retomar tudo. Esse prazer que eu achava não ter mais. Tudo voltou a ter o mesmo brilho, o mesmo fogo que sempre senti. O “Eita” é muito honesto com essa coisa íntima, familiar e orgânica que me trouxe aqui hoje.
Da crise de identidade surgiu no seu disco mais pessoal, com a sua verdade, o seu cotidiano, relações, as coisas que lhe são mais caras.
Não por acaso, a primeira música fala de confiança. Foi o que a gente perdeu. Então, tudo ficou muito leal a esse compromisso que sempre tive com o prazer, a honestidade, a entrega. Daí, a pessoalidade. É tudo na primeira pessoa. E, com certeza, é dos discos que eu mais estou presente no vernáculo, na palavra, nos textos.
‘Só o que dói traumatiza. Precisamos descobrir uma maneira de ser traumatizado pela coisa boa’
Precisou sofrer para jogar no mundo algo leve…
Tem essa coisa de só reter na memória o que dói. Só o que dói traumatiza. Precisamos descobrir uma maneira de ser traumatizado pela coisa boa. “Eita” é o meu trauma mais recente (risos). Conversar com você me fez perceber que foi, realmente, um exorcismo. Nos mais belos sentidos.
A canção “Confia em mim”, que abre o disco, é como se você pegasse o ouvinte pela mão e o conduzisse numa viagem que propõe “vem comigo que o mundo pode ser melhor, as coisas vão melhorar”…
Perfeito. E, na primeira música, peço a confiança para explicar o “Eita”, a segunda música, que fala isso: “A cada dia, toda hora, desmorona sem demora o nosso chão/ O fio da realidade estica, implica e amplifica”. Está falando sobre o que a gente viveu e continua vivendo.
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Mas é esperançoso na hora que diz “o fato é que o afeto é a receita”, “o que não tiver jeito, o amor ajeita” ou “o amor é uma espécie de vacina”, da canção “Foto de família”, que tem participação da Bethânia…
É afeto e pessoalidade. “Aos domingos”, ofereci ao meu pai, que colocou como condição para que eu não fosse mais à igreja passar aquele tempo da missa ouvindo discos com ele. No texto, digo que me tornei o que sou por causa dele: “Cismo e não me abalo/ Sigo no meu prumo/ Eu como até o talo/ Eu tomo todo sumo”.
Quanto à Bethânia, ela sempre teve esse afeto comigo, o que gerou intimidade na gente. Todas as pessoas que estão no disco estão por causa da intimidade. Isso é devido à lealdade que tenho com o projeto inicial de ser um disco íntimo. Mostrei a foto e disse a Bethânia: “Sei o que você faz com as palavras. Não existe intérprete que chegue perto disso. Queria que emprestasse essa exuberância numa canção afetiva, uma ode à minha mãe”. E ela: “Você acha que eu sou capaz?”. Rapaz… (risos). Fizemos num take só. Tanto que tem um rasqueado na voz dela quando termina uma palavra ou outra. Isso é muito ela.


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