A mutilação de parte dos dedos da mão esquerda do aluno José Lucas, de 10 anos, não foi um ato isolado de discriminação de brasileiros em uma escola pública de Portugal. Há exatos quatro anos, após uma série de episódios violentos contra a maior comunidade estrangeira em salas de aula, o então secretário de Estado da Educação, João Costa, anunciou que haveria conscientização dos professores sobre a diversidade da língua portuguesa e da tolerância ao “brasileiro”. Apesar de a variante do idioma ser identificada como uma das origens do problema, nada mudou, exceto pela multiplicação de casos e vítimas brasileiras.
Após o episódio, a soldadora brasileira Nívia Estevam, mãe de José, conseguiu transferir o filho da escola nos arredores de Viseu onde ele teve os dedos presos na porta do banheiro por dois alunos, levando à amputação das pontas do indicador e do dedo médio. Também teve que mudar de cidade, porque a criança ficou traumatizada com a violência que sofreu por ser e falar diferente.
— Falta política de inclusão nas escolas por desinteresse do Estado e dos professores. Ele não é uma criança que a sociedade, principalmente a portuguesa, acha que é o padrão. Então, foi rejeitado pelas crianças, primeiro por falar diferente deles, e isso foi aceito pelo corpo docente, que olha para o imigrante preto sem humanidade — disse Nívia. — Ali, escondidinha, está a xenofobia.
Segundo a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), 88 mil brasileiros estavam matriculados até o fim do primeiro semestre deste ano nos equivalentes brasileiros aos ensinos infantil, médio e fundamental. Um aumento de mais de 550% desde a nova onda migratória iniciada em 2017. Hoje, há aproximadamente 500 mil brasileiros no país de maneira oficial, mas o número da agência de imigração descarta quem tem dupla cidadania. O total pode ultrapassar os 600 mil.
Foi diante da disparada da maior comunidade estrangeira que o então secretário de Educação, João Costa, anunciou um projeto de conscientização de professores há quatro anos. Ele integrava o Partido Socialista, que deixou o poder em 2024 — ele saiu do cargo em 2022. Hoje diretor da Agência Europeia para Educação Inclusiva, ele explicou o que houve com o projeto.
— Deixei na pasta de Educação a encomenda de preparar uma formação na área, mas não sei se teve continuidade. Fico triste, porque a questão original é entender que somos todos falantes de português e ninguém pode ser discriminado por falar a própria língua — disse Costa.
A mãe de José tem sido atacada nas redes sociais por ter denunciado a agressão. E rebate os comentários que acusam os dois agressores, que segundo ela são crianças portuguesas, de serem brasileiros. Ela disse que reconhece haver discriminação e bullying nas escolas de praticamente todos os países, mas no caso de José, e de Portugal, o alvo tem sido muito específico:
— Foi bullying por ele ser diferente, de outra nacionalidade, mas também por falar diferente. A criança que decepou o dedo do meu filho foi a primeira a começar a dizer que ele não sabia falar português, que tinha que aprender, porque eles não entendiam o que ele falava. Meu filho tem uma dicção muito boa — afirma ela, que é de Belém do Pará. — Dizer que ele não sabe falar a língua materna é uma violência que essas crianças reproduziram e que vem de algum lugar: da escola, dos pais ou da rua.
Em algumas escolas do país há alunos de mais de 40 nacionalidades, prevalecendo entre os estrangeiros brasileiros e africanos, de países como Cabo Verde e Angola. Justamente por isso “é preciso trabalhar melhor a inclusão de imigrantes junto ao corpo docente”, explica a psicóloga e escritora Rute Agulhas, que tem extenso currículo na área da terapia familiar e direito das crianças. Ela ressalta ainda a importância da orientação dada pelos familiares, que muitas vezes podem discriminar em casa músicas e youtubers brasileiros, como já aconteceu com os irmãos Felipe e Luccas Neto.
— Na perspectiva de muitas famílias e professores, o funk tem conteúdo sexualizado e impróprio para crianças. Depois, os youtubers, de quem os pais e os educadores se queixam, falam com sotaque “brasileiro” e utilizam expressões (quando falam) que são transferidas para o texto escrito, algo visto como negativo. É uma forma de discriminação — afirmou Agulhas.
X, filho de um português com uma brasileira, quase acabou em um hospital após um ataque sofrido em uma escola pública de Portugal. Sua mãe, que pediu anonimato, contou que a criança, então com apenas 6 anos, quase teve a barriga cortada por não pronunciar a palavra “cenoura” da maneira que os agressores — adultos e crianças — exigiam. Depois de ouvirem o sotaque, disseram querer ver de qual nacionalidade era o sangue que corria em suas veias.
— Ele estava no recreio quando foi interceptado por dois colegas, que insistiam para ele falar “cenoura” com pronúncia portuguesa. Como isso não aconteceu, pegaram uma pedra afiada, seguraram meu filho e se preparavam para cortar a barriga, para ver se ele tinha sangue português, mas não conseguiram. E ninguém viu — contou ela.
A brasileira disse que, ao saber do caso, foi imediatamente ao colégio, onde, segundo ela, tudo foi tratado como brincadeira de criança, como no episódio sofrido por José.
— Primeiro, tentaram jogar a culpa na vítima. Depois, as crianças pediram desculpa e ficou por isso mesmo. É um comportamento normalizado. Ele teve uma professora que mandava ele calar a boca toda vez que queria falar. Se falasse “brasileiro”, era proibido de conversar ou brincar com outras crianças — contou a brasileira.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/W/Q/pRZEYkTo2qBYhPf2ZoYw/113143695.jpg)
Há cerca de um ano, a brasileira Jenifer Lima foi espancada na porta de um colégio em Santarém, em um episódio que foi filmado, viralizou e chocou o país. Ao GLOBO, ela relatou que sempre ouviu deboches por causa de seu sotaque. Apesar de o estopim da agressão não ter sido diretamente o idioma, o fato de ser brasileira pesou.
— As professoras ignoram, não dizem nada. E eles ficam debochando de como eu falo, tentando me imitar. Quando precisei falar em uma aula, a professora disse que eu estava errada gramaticalmente, e que eu estava em Portugal. Brincando, mas com maldade. Por isso vou fazer Direito, para proteger as pessoas que não conseguem proteção. Quero ser justa — disse Jenifer.
Sua mãe, Lucélia Oliveira, prestou queixa na delegacia e levou a adolescente ao hospital, onde recebeu o laudo da agressão. A investigação, dentro e fora da escola, não deu em nada.
— Um pedido de desculpas, apenas. (Agressores) se sentem protegidos por serem portugueses. Quando somos nós, brasileiros, querem investigar. Ela está sob acompanhamento psicológico até hoje por tudo que aconteceu — contou Lucélia.
A filha de Y, que também pediu anonimato, foi agredida em outro episódio violento na região metropolitana de Lisboa. Como Jenifer, ela é adolescente e, naturalmente, mais resistente a pronunciar o idioma com sotaque de Portugal.
— Começa com os professores, passa pelos funcionários das escolas, contamina os alunos e continua nas famílias portuguesas. Discriminação que gera discriminação — declarou Y. — Ela é brasileira, tem 16 anos e não vai falar como uma portuguesa ou com sotaque português. Mas ainda hoje a professora de português cobra a construção gramatical: “Fala na nossa língua”, ela diz.
Procurado, o Ministério da Educação, que abriu processo para investigar o caso de agressão ao aluno José, não respondeu o que aconteceu com o projeto de conscientização de professores.