Quem foi criança em qualquer época a partir dos anos 1970 certamente já jogou ao menos uma partida do jogo Super Trunfo. Trata-se de uma disputa de cartas com atributos, e uma única, que leva o nome do jogo, é capaz de vencer quase todas as demais. Pois é: nem o Super Trunfo liquida todas as demais, pois as cartas marcadas com um “A” se sobrepõem a ele.
O que o Supremo Tribunal Federal faz ao tentar limitar quem pode pedir impeachment de seus integrantes e aumentar na mesma tacada a votação necessária para abertura desses processos é buscar um Super Trunfo que lhe permita sobrepujar os dois outros Poderes, e isso não é aceitável numa democracia constitucional.
A decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes é um Super Trunfo mesmo antes da distribuição das cartas. Ele tenta se antecipar à esperada eleição de muitos expoentes da direita para o Senado, que poderia levar a uma mudança na correlação de forças na Casa — obstáculo, até aqui, a que pedidos de impeachment prosperem.
Não há nada de ilegal, inconstitucional ou antidemocrático na estratégia declarada do bolsonarismo de concentrar esforços na eleição de nomes ao Senado. A esquerda, aliás, comeu mosca e demorou a acordar para a necessidade de também priorizar essa disputa, sempre relegada a segundo ou terceiro plano. O que configuraria intenção autoritária seria usar essa maioria, caso seja obtida, para acossar os ministros e buscar uma revanche contra o STF pela atuação na defesa da democracia nos últimos anos.
Mas mudar as regras do jogo não é menos autoritário, e, com a canetada, Gilmar abre mais um precedente perigoso de investida de um Poder nas atribuições de outro, gerando um efeito dominó que, a depender da extensão, pode provocar uma crise no presente sob o pretexto de impedir outra no futuro.
A decisão dele ocorre na mesma semana em que o equilíbrio institucional já tinha sido quebrado pela picuinha infantil entre Executivo e Legislativo com a indicação, seguida de recuo inédito, com o não envio da mensagem ao Senado, do nome de Jorge Messias para uma cadeira no próprio STF.
A entrada da liminar Super Trunfo contra o impeachment de ministros tratou de transformar a Praça dos Três Poderes num ringue de vale-tudo, em que todos se estapeiam e ninguém tem razão plena. Num momento em que a sociedade já manifesta muitas reservas à hipertrofia na atuação do Judiciário, ao apetite do Legislativo na aplicação de recursos do Orçamento e à recusa do Executivo em cortar os próprios gastos, enquanto aumenta tributos para determinados segmentos, essa luta livre só reforça o ceticismo na política e na institucionalidade, favorecendo a adesão a discursos populistas ou claramente antissistema.
Com as regras atuais que regem os processos de impeachment, nunca se instaurou nenhum contra ministros da mais alta Corte do país. A possibilidade de dar a última palavra sobre a constitucionalidade das iniciativas dos demais Poderes, conferida ao Judiciário pela própria Carta Magna, já representa a necessária blindagem contra tentativas de manietar e acossar os juízes, justificativa dada pelo decano do Supremo para sua decisão monocrática.
Mais que isso é ir além do que o constituinte sabiamente deliberou e buscar o tal Super Trunfo sem restrições, algo que nem os criadores do jogo de cartas infantil ousaram, justamente porque acabaria a graça da brincadeira. Como nesse caso se trata da vida real, o risco é mais sério. Significa ferir de morte o sistema de freios e contrapesos — o mesmo que nos trouxe até aqui e nos salvou de uma tentativa de golpe de Estado em pleno século XXI.
O presidente do STF, Edson Fachin, prometeu autocontenção da Corte ao assumir a cadeira. Mas o alinhamento de forças deve fazer prevalecer a liminar do decano, e qualquer tentativa de modular seus efeitos parece fadada ao fracasso.

