por Jozafá Batista (*)
A ideia de que as sociedades se organizam de forma mecânica, como uma engrenagem, um mecanismo (por assim dizer), é a base de uma teoria filosófica do século 19 denominada Funcionalismo e que foi extremamente importante para a consolidação da ordem capitalista na Europa.
Entre os vários conceitos desta teoria, um dos mais importantes é o de “anomia social”, resultante do funcionamento anormal do mecanismo, com efeitos nocivos sobre indivíduos e instituições. Caberia à ciência localizar estas falhas e oferecer instrumentos para a sua correção, devolvendo à sociedade a condição de equilíbrio funcional.
As pretensões funcionalistas resultaram em um modelo verticalizado e hierarquizado do sistema educacional, tal como existe ainda hoje, mas seu principal subproduto foi o fortalecimento da ordem estrutural que gerava aquilo que os funcionalistas enxergavam como “distúrbios” (violência, corrupção, pobreza etc) a “serem estudados”.
Em outras palavras, a teoria mecanicista serviu para adequar os indivíduos aos efeitos sociais desagregadores produzidos pela própria ordem capitalista. É que os funcionalistas enxergavam os “desvios sociais” como problemas unicamente organizacionais ou morais.
Esta falha metodológica fez com que, ainda no século 19, as teorias mecanicistas fossem banidas das Ciências Sociais. “As teorias sociais dominantes tendem a analisar as sociedades abstraídas das relações materiais concretas dessas mesmas sociedades”, resumiu um dos críticos.
O retorno triunfal de “análises” mecanicistas, dois séculos depois, não mais pelas ciências sociais, mas pela ficção, é revelador em si mesmo. Por exemplo, revela que suas ideias permaneceram, não por serem corretas, mas (como suspeitavam alguns críticos) por integrarem a visão de mundo das classes dirigentes. A razão da permanência é, portanto, orgânica: como o capitalismo tem a desigualdade como pressuposto, uma teoria capaz de desviar o foco desse problema estrutural para questões morais é um verdadeiro achado, um tesouro ideológico a ser generosamente distribuído nas diversas situações de crise.
O ponto é que há um desequilíbrio orgânico sobre o qual se erguem todas as sociedades contemporâneas. A própria noção de “democracia” é um exemplo. A rigor, não é possível a sociedades capitalistas serem democráticas – isso demandaria o fim desta exata antítese, dada a oposição ontológica entre capital e trabalho. Gerir esse desequilíbrio é a premissa básica do que conhecemos como Estado. Isso se dá – de novo, formalmente – através da arrecadação e aplicação de impostos e tributos em um sistema público de serviços básicos: educação, saúde, saneamento básico, assistência jurídica etc.
O desvio de finalidade em qualquer ponto dessa trajetória não é um fenômeno social em si. Nem mesmo com a natural licença poética de obras de ficção.
O que no século 19 era estratégico tornou-se hoje normativo. Todo o sistema educacional ocidental tratou de produzir teorias e técnicas com pressupostos mecanicistas. Isso explica a tendência das democracias a elaborar seguidos conceitos de modernização institucional para dar conta de abstrações como o “combate à corrupção”, “a fome”, “o aumento da pobreza” etc.
A arte só imita a vida. A cosmovisão essencialmente moralista, com sua linguagem quixotesca e trejeitos de profeta do Antigo Testamento, é parte do pacote de insanidades que nos vendem via Netflix, mas também via partidos políticos. O elo entre todos é a incapacidade de enxergar um palmo diante do próprio nariz, dado o subproduto que são desse estado de coisas.
Nietzsche, também no século 19, já nos advertia sobre o caráter ideológico do conceito de “verdade”. Segundo ele, toda narrativa que se pretende verdadeira é somente uma estratégia para exercer controle e apagar outras narrativas. Embora a epistemologia nietzschiana tenha maior utilidade na Psicologia do que em Ciência Política, essa tese em particular tem grande relevância para ajudar a entender a eficácia de canoas furadas como o mecanicismo, a despeito de sua utilidade generalizada nos tempos atuais.
Estamos todos, como naquela canção da banda Pink Floyd, “confortavelmente entorpecidos”.
Alguns mais, outros menos.
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* Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM), Campus Eirunepé.

