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quarta-feira, abril 24, 2024

Não houve ‘ataque ao daime’ por parte de pesquisador

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Por Leandro Altheman

Desde pelo menos a década de 90 leio com atenção tudo que é publicado a respeito do daime, ayahuasca, vegetal, uni e os muitos nomes pela qual é conhecida a bebida da floresta produzida a partir do cipó (Caapi, Jabuge, Mariri, Ayahuasca, Uni, etc) e da folha Chacrona (Rainha, Zacorona, Chacuruna, Cauá, etc).
De lá pra cá não raras vezes surgem de fato ataques de setores da imprensa à bebida e o contexto de uso religioso-cerimonial em que é utilizada.

Um caso clássico, foi o ataque, aí sim, publicado na revista Veja contra a União do Vegetal na década de 90, época em que o general Cardoso (sim, um general apoiou o processo de regulamentação), com base no direito à liberdade religiosa, deu parecer favorável á sua legalização. O argumento do artigo era que se alguém quisesse criar uma religião de uso do crack, ela poderia. Desconsiderou os séculos ou até milênios de uso da ayahuasca em contexto cerimonial, e o estabelecimento há décadas de religiões como o Santo Daime e a UDV, fruto do contato dos seringueiros nordestinos com a bebida de utilização indígena.
Ou então quando o dirigente do Santo Daime em SP, Glauco Vilas Boas e seu filho foram tragicamente vítimas de um duplo homicídio cometido por um dependente químico que ele tentara ajudar através do daime -a bebida e a doutrina. A imprensa culpou o daime, mesmo que o autor do crime estivesse sob efeito de cocaína quando cometeu o ato.

Não apenas a bebida, mas as pessoas que fazem uso da bebida também são alvo de ataques. Eu próprio fui alvo de uma campanha difamatória nos anos de 2010, por conta de assumir publicamente a utilização da ayahuasca para fins de autoconhecimento e conexão espiritual. A campanha promovida contra minha pessoa, tinha por objetivo afirmar que por fazer uso da ayahuasca ainda que de maneira cerimonial em intervalos quinzenais, não seria capaz de relatar os fatos com suficiente grau de precisão e realidade necessários a um jornalista.

Enfim, ataques ao daime, à ayahuasca, aos povos indígenas, às pessoas que fazem uso da bebida, são quase que triviais.
No entanto, não foi esse o caso do artigo publicado no Jornal Grande Bahia de autoria do pesquisador Juarez Duarte Bonfim que uma matéria produzida no Acre faz referência como sendo um ‘ataque à religião do Santo Daime por pesquisador de outro estado’.

O autor faz uma crítica muito pontual ao uso indiscriminado e descontextualizado do termo ‘padrinho’ e ‘madrinha’, termo a qual discípulos do Santo Daime se referem respeitosamente aos seus dirigentes. Argumenta Juarez Bonfim, de que o uso dos termos no contexto amazônico, perfeitamente integrado às relações sociais da região, soa um tanto artificial e forçado quando transplantado para outras realidades. O artigo chega a citar o caso de que em uma capital do sudeste estariam oferecendo ‘curso de padrinho’.

Não há ataque algum à doutrina. Pelo contrário, Juarez Bonfim, pessoa integrada ao meio ayahuasqueiro e que administra uma página chamada ‘Pesquisadores da Ayahuasca’, faz uma crítica sobre algo que tem incomodado muitas pessoas do meio: a tentativa de produzir uma cópia descontextualizada justamente daquilo que torna o daime uma religião tão original, brasileira e amazônica.

Juarez esteve no Acre inúmeras vezes, para comungar a bebida e para participar das Conferências da Ayahuasca no estado. O fato de ser ‘de outro estado’, não deveria ser incômodo, já que é justamente a expansão da doutrina para outras estados que traz relevância e importância ao Acre como uma espécie de ‘Meca’ dos ayahuasqueiros. Juarez é muito mais um aliado do daime e mesmo do Acre, do que um inimigo, tanto que sua crítica se concentra justamente na descontextualização de uso da bebida.

Sendo natural das terras de Jorge Amado, onde os santos católicos conversam com os Orixás africanos, Juarez deve ter algum talento para as coisas das religiões brasileiras, marcadas pelo sincretismo, pela reinvenção e pela originalidade, uma vez que levantou um debate interessante: como pode uma religião amazônica se expandir para o sudeste sem perder o seu contexto original e também sem parecer uma cópia artificial? Ao expor essa preocupação, Juarez na verdade demonstra o zelo e o apreço pela doutrina, e não o contrário.

Tampouco existe ‘ataque’ quando uma pessoa de determinada religião faz uma crítica a algo que o incomoda em sua própria egrégora. Quando o Pastor batista Ricardo Gondim escreveu seu célebre artigo “Deus nos Livre de um Brasil Evangélico”, ele não dirigiu um ataque à religião evangélica, mas chamou a atenção em seu próprio meio, a respeito de algo que lhe incomodava em sua própria egrégora, a saber: a tentativa de impor os padrões religiosos evangélicos sobre a cultura brasileira.

Juarez faz parte de um grupo de pesquisadores, do Brasil e do mundo, que tem se debruçado sobre os usos da ayahuasca a partir da sociologia e antropologia, da etnobotânica, da neurociência, da psicologia, e até arqueologia e paleontologia.

Entre os inúmeros debates pautados a respeito da ayahuasca, alguns tem ganhado destaque, como por exemplo a mercantilização da bebida e dos saberes, a pasteurização da cultura amazônica, o avanço da retórica conservadora nas religiões etc.

Todas essas pessoas que travam estes debates, tem algum grau de aproximação com a bebida. Ainda que a ideia do pesquisador seja alguém distante de seu objeto, o próprio fato de desenvolver interesse pela ayahuasca, significa atribuir relevância para alguma área de estudo.

No caso de Juarez, todas as vezes que se refere ao Mestre fundador da doutrina do Santo Daime, Mestre Irineu, ou aos dirigentes mais antigos, demonstrou respeito, portanto não é preciso atribuir a ele um ‘ataque’ que não houve. Sua crítica se dá justamente por ter conhecido a religião em seu contexto original e o estranhamento de vê-la tão distante deste contexto.
Uma crítica quando vinda de alguém que respeita a religião e a bebida, vale ouro, pois não se trata de alguém que queira destruir ou ridicularizá-la, mas de procurar preservar os sentidos mais profundos que esta religião transmite.

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